A Biblioteca Áurea de Alencar (BICA), que fica no interior da Casa de Ensaio, estava lotada de crianças na tarde do sábado, 13 de maio. Espalhadas pelo chão, em carpetes com os responsáveis por perto, os pequenos interagiam com a contação “História de Brincar”, de Edu Brincante e Gabi Cantante.
Joana, de 6 anos, estava elétrica no final da apresentação. Ela contou à reportagem do TeatrineTV, o que mais havia lhe tocado nas histórias. “A Borboleta, porque ela é fofa. Gosto dela porque ela voa, só ela que voa”, apontou ao lado da mãe Flávia Freire, professora da UFMS. Em seguida, Joana interpelou a mãe ‘cochichando’ próximo ao ouvido dela: “Mãe, eu quero fazer aula aqui, mãe. Coloca eu para fazer aula aqui?”, levando a genitora a abrir um largo sorriso.
O brilho nos olhos de Joana, denotava a importância da apresentação que acabara de ocorrer na BICA. Carioca, a mãe de Joana revelou que tem frequentado apresentações do Sesc, mas que não tem encontrado em Campo Grande, a diversidade de opções de atividades culturais para sua família. “Eu acho que aqui é muito fraco ainda essas atividades, tem pouca coisa, tem poucas opções. E se você olhar, aqui tem público, né? Se tivesse mais ofertas, com certeza teríamos mais gente sendo formada. Aqui não tem muita opção nem para criança e nem para adultos, então, sempre que tem alguma coisa eu vou e levo a Jojo”.
Também presente na apresentação, o produtor rural autônomo, Valdir Triches, de 57 anos, esbanjava satisfação ao ver os netos Pedro, de 4 anos, e Luize, de 6 anos, radiantes durante e ao término da contação de história. “Eu moro na área rural, mas venho de longe com prazer... É muito gostoso o projeto para a mentalidade deles. Eu como vovô, eu me senti criança de ver eles brincando”, revelou.
Triches apontou que o impacto da apresentação não fica restrito ao espaço geográfico e nem mesmo ao tempo, pois em casa as crianças se divertem reproduzindo cenas e revivendo momentos e os personagens. “Expande a criatividade deles. Quando eu era criança, tinha pouco disso na escola e na cidade, ainda tem pouco, mas que bom que a Casa aqui está nos dando essa felicidade. Esses momentos aqui são inesquecíveis”, opinou.
Acenando positivamente com a cabeça, a neta de Triches, Luize, resumiu a importância daquela tarde. “Tô muito feliz, sim. Gosto muito de história, de dançar. Eu gostei mais do camaleão (Sic)”, externou sobre o personagem da contação de Edu e Gabi.
PONTES DE LEITURA
A apresentação de Edu e Gabi foi contratada pela Casa de Ensaio, por meio do projeto "Pontes de Leitura", apoiado financeiramente pelo Criança Esperança 2022.
“O Pontes de Leitura é um projeto que foi pensado para a Biblioteca Aurea Alencar, que tem o objetivo de desenvolver ações interdisciplinares de leitura, para que proporcione aos alunos e as pessoas envolvidas o contato com as obras literárias de autores nacionais e internacionais, e com texto de outras linguagens artísticas como Teatro, Danças e Artes Visuais”, esclareceu um dos coordenadores da Casa de Ensaio, Marcos Mattos.
A proposta recebeu pouco mais de R$ 190 mil do Criança Esperança, para realizar ações culturais num formato de processo mediativo. “Temos 4 linhas de atuação: rodas de leitura ou trans-leituras; rodas de conversas, baseada em livros e textos mediadas por especialistas na área, contações de histórias e ações que são realizadas nas escolas. Essa é a frente do programa Pontes de Leitura”, detalhou Mattos.
A Casa de Ensaio é uma instituição que tem 27 anos de atuação com vários projetos realizados na área não só da Literatura, mas dentro do processo de arte-transformação.
Mattos apontou que o diferencial do projeto Pontes de Leitura é justamente a linha da literatura, relações interdisciplinares conectadas e mescladas à outras linguagens artísticas.
O coordenador considerou a premiação um aceno de valorização às ações culturais da instituição. “Para a Lais Dória, para o Arthur Monteiro e para todo mundo que vem construindo a história da Casa de Ensaio junto, foi uma notícia linda... Porque, são poucas as instituições que sobrevivem ao tempo e a Casa de Ensaio está nesse processo de arte-transformação, trabalhando com muitas linhas de pensamento, há 27 anos modificando o contexto da cidade de Campo Grande e do Estado. Então, para nós foi lindo, foi o reconhecimento de um trabalho e importante para que a gente pudesse continuar com todas as atividades que a gente realiza por aqui”, considerou.
Além da Casa de Ensaio, em 2022 o Criança esperança contemplou o Instituto Rural Escola das Águas, que fica em Corumbá (MS). O tema deste ano foi “Educação é a nossa esperança” que se conecta com as ações de ambas as entidades.
BRINCANTES
Fruto da Casa de Ensaio, Edu também conversou com o TeatrineTV ao final de sua apresentação. Sentindo-se valorizado, o artista destacou como se descobriu brincante.
“Eu sou ex-aluno da Casa de Ensaio, toda a minha vivência artística foi aqui na Casa, onde eu entrei em 2002. Depois eu fui convidado a ser educador da Casa e desde então, eu tive muitas experiências com a infância, sempre ministrava oficinas aqui na área das brincadeiras cantadas. Venho fazendo essas pesquisas de arte para a infância desde 2008, fazendo cursos com mestres que estudam isso nas comunidades”.
Em 2015, Edu formou-se em Artes Visuais e ao dedicar-se a profissão acabou afastando-se do ofício de brincante. “Mas eu comecei a sentir muita falta de brincar, de ser ator e com a pandemia eu decidi me reconectar com esse meu Edu Brincante. Eu falo que os melhores anos da minha vida foram na Casa e Ensaio, então resolvi encarar essa vida de contação, mesmo sabendo dos desafios. Eu agora sigo professor na rede municipal de ensino, mas também estou com esse trabalho ao lado da Gabi”.
A maneira de contar histórias e estética usada por Edu para conseguir levar as crianças ao mundo da imaginação, surgiram de diversas pesquisas, com bagagem da Casa de Ensaio, mas também com profissionalização adicional. “Na Casa eu trabalhava com contação de histórias, poesia, mas não era focado... Aí, diante da pandemia, eu comecei acessar aqueles materiais de gente de todo o Brasil, que trabalham com a arte brincante e foi me dando mais vontade de fazer um trabalho, agora cheguei nesse projeto mais redondo que é o Edu Brincante, que mescla teatro, contação de histórias e as brincadeiras musicais”, afirmou.
Mesmo com todo o trabalho que antecede a apresentação, Edu revelou ao TeatrineTV, que o mais complexo na profissão é ser visto como uma atividade artística profissional.
“Sem dúvidas, o mais complicado é fazer as pessoas entenderam que esse trabalho não é uma recreação, porque quando a gente alia brincadeira junto as pessoas acham que é ‘facinho’, ‘brincadeirinha’, tudo no diminutivo, né? Mas na verdade tem muito trabalho por trás disso. São horas de trabalho, horas de pesquisa, para chegar nisso que você viu aqui. Eu levo muito a sério isso, porque as crianças são muito verdadeiras, se eles não gostarem elas vão dizer ali na frente de todo mundo, né? Dá um frio na barriga, sempre, mas tenho recebido muito carinho das crianças”, apontou.
Para o artista, seu trabalho se alimenta de memórias de sua própria infância e em ‘Histórias Cantadas’, são usados diversas estratégias para captar a atenção do público da era digital.
“Quando eu era criança, eu assistia Castelo Ratimbum, por exemplo, e eu era encantado por bonecos, pelas históricas com bonecos, eu cresci assistindo Bia Bedran... E quando decidi fazer esse trabalho, quis fazer com base nas memórias afetivas da minha infância. Para pegar eles nesse diferencial, porque como são dessa geração do celular, a atenção deles é rápida e curta, então eu uso bonecos de papel, bonecos de tecido, porque eles não tem essas referências. E o que mais me marcou na infância foram as apresentações artesanais. A música também é um grande aliado ao nosso trabalho, quando eu vejo que eu estou os perdendo, entra a música e nós recuperamos a atenção deles”.
Se hidratando, sentado a um banquinho de madeira na BICA, Edu oscilou da expressão facial feliz e apaixonada, para uma face preocupada. “É que nós moramos numa Capital que tem muito pouca coisa para crianças, falta muito incentivo para essa área e eu tenho essa missão de fazer esse trabalho... E quando eu vou para as escolas públicas, então, é uma grande comoção... Eu tenho um trabalho social, em que ao menos 4 vezes por mês tenho ido às escolas, eu não faço de graça, mas faço um valor simbólico. E é muito bonito de ver o esforço dos professores fazendo vaquinha, mas o certo não era para ser assim, o ser certo era que houvesse projetos no poder público do município e no estado, que oferecesse apoio para levar essas contações às escolas. Na periferia é muito potente as apresentações, o que falta é ter incentivo, porque temos o trabalho pronto, mas sozinho não posso fazer nada, precisamos de apoio para chegar a essas crianças”, observou.
O Projeto Pontes de Leitura, além de usar a BICA como palco, também levou Edu e Gabi á algumas escolas na periferia, assim como levou as crianças à Casa. “Aqui na Casa de Ensaio é um local para agregar, temos os objetivos de trazer as crianças dos lugares mais periféricos da cidade e com esse apoio do Criança Esperança, vamos chegar às escolas na periferia”, acrescentou Edu.
Questionado sobre o porquê optou pela profissão de brincante, Edu disse: “O brincante vem lá do Nordeste, é uma inspiração da cultura popular de lá. O que mais me encanta no persona ‘Brincante’, é que eles não se denominam ator, cantor, dançarino, acho que para ser brincante é você querer fazer. Lá eles fazem mesmo pelo amor, com simplicidade, pela verdade desse brincar, é um personagem lúdico que se abstém do perfeccionismo para chegar ao lugar artesanal. Isso me permite fazer o que eu quiser em cena e não sentir mal por isso, as vezes desafinamos e se fosse um cantor talvez pudesse ficar chateado, eu não, porque eu estou me permitindo jogar com as crianças. Para ser brincante o necessário é que se tenha amor à arte”.
O FUTURO NA CASA
Com o prêmio Criança Esperança, Mattos disse que a instituição cultural valoriza a leitura para transformar pessoas e o território em que atua.
“A Casa de Ensaio está num processo de reconhecer quais são os espaços que ela consegue estar, porque é uma instituição que trabalha com arte-transformação. Então, ela está ligada a educação, ao social, ao cultural, ao artístico, além de estar ligada ao meio ambiente que é uma prática também da Casa. Então, eu acho que isso é importante para instituições que trabalham na área social”.
O objetivo do espaço cultural, segundo Mattos, é transformar como um todo a criança e o adolescente por meio da arte. “Como ele vai se inserir na sociedade? Qual o pensamento dele? como é que ele consegue ter um pensamento mais democrático, revendo seus conceitos constantemente, não só conceito dele enquanto pessoa, mas da família com a qual ele convive? Então, eu acho que instituições como a Casa de Ensaio, que provocam essa relação do ser humano, se ele quiser ser artista depois, isso é consequência, a escolha é dele. Aqui o processo é por meio da arte, a gente poder tocar em assuntos que são relevantes para a sociedade como um todo”.
Ciente do papel social da Casa, Mattos completou que esse financiamento do Criança Esperança ajuda nas ações da instituição até o final de 2023, mas que a unidade já se inscreveu no Criança Esperança desse ano para buscar a continuidade do apoio. “O resultado desse projeto é o cumprimento das metas, as realizações de todas as ações e a gente observar como isso tem ressoado tanto nos alunos da Casa de Ensaio, quanto na população que está acompanhando esse projeto. A gente sabe que o resultado de um projeto não acontece do dia para noite, né?”, finalizou.
A Biblioteca Áurea Alencar, na sede da Casa de Ensaio (Rua Visconde de Taunay, 203 - Amambai), ao todo ao menos 6 apresentações por meio do financiamento. Um dos objetivos dos coordenadores é abrir a biblioteca à comunidade campo-grandense, por isso, o acervo também está sendo ampliado.
Acompanhe as próximas etapas do projeto no Instagram oficial da Casa de Ensaio.