Dezenas de trabalhadores da cultura campo-grandense fizeram um cortejo, na 6ª feira (15.dez), partindo da prefeitura até a parada natalina na Rua 14 de Julho, denunciando calotes da prefeita Adriane Lopes nos editais culturais de 2022 e 2023 e, cobrando responsabilidade com orçamento da cultura. Esse é o 4º ato dos agentes culturais que seguem em mobilização contínua neste mês.
- 1º ATO - leia: Adriane Lopes recebe manifestantes, assume calote na cultura e repete estratégia de Trad
- 2º ATO - leia: Prefeitura lança 'fake news de R$ 8,8 milhões' para 'apagar' calote
- 3º ATO - leia: Trabalhadores da Cultura conquistam apoio na Câmara contra calote de Adriane Lopes
De acordo com a presidente do Fórum de Cultura de Campo Grande, Romilda Pizani, as ações devem continuar e serão ampliadas até que a classe seja atendida. A cobrança primária é pela execução dos editais. “Pague o edital de R$ 8 milhões. Cobramos que se publique esse edital de R$ 8 milhões e, sim, continuaremos com nosso movimento. R$ 8 milhões é o mínimo. E o movimento está lindo, o movimento está ganhando muitas pessoas que estão aderindo, pessoas inclusive que não são da cultura, mas que são sensíveis a nossa pauta e compreendem a importância do financiamento desses projetos que chegam às diversas regiões de Campo Grande e não atendem só ao Centro”, pontuou a presidente.
O cortejo de manifestantes partiu da prefeitura na Avenida Fonso Pena até a Rua 14 de Julho, onde encontaram os bonecos da parada natalina e o público. Na ocasião foi apresentado o problema por meio de paródias e informes dos manifestantes sobre a situação de não execução dos editais e do orçamento cultural nos últimos anos. Veja a cobertura em vídeo:
NÃO É SÓ EDITAL...
Com grandes faixas, apitos e cantorias, os agentes culturais apontavam o calote de Adriane Lopes nos editais do município: FMIC, FOMTEATRO e Prêmio Ipê. Esses três mecanismos de fomento foram descontinuados desde que Adriane Lopes assumiu. A prefeita está se valendo apenas de recursos federais (Lei Paulo Gustavo), para dizer que investiu na cultura, mas os manifestantes explicam que o investimento federal não anula a obrigatoriedade de execução do orçamento municipal da cultura.
“A gente fala no edital porque é uma questão emergencial, o edital é o mínimo, mas no orçamento da cultura, previsto na Lei do Sistema Municipal de Cultura, o edital é uma parte. A outra parte do orçamento é destinada aos eixos previstos no sistema, que são: formação, registro, memória, produção, difusão... E a formação abrange tanto capacitação para os artistas, quanto para a população ter acesso a formação, com oficinas, cursos, nas diversas linguagens da arte. Além disso, um orçamento fora dos editais cria mecanismos de circulação das produções nas comunidades, forma o público, forma o cidadão. E assim as pessoas são apresentadas às diversas manifestações culturais de seu território, bem como poderão se envolver nisso politicamente”, esclareceu o professor, produtor cultural e ator, Fernando Cruz.
Representante da Associação Reggae na manifestação, Diego Manciba explicou que os editais fomentam fortemente a diversidade do Reggae e conseguem alcançar as periferias e as linguagens de maneira mais assertiva. “Nós somos além da música, a cultura Reggae é ampla e os editais conseguem, de certa forma, alcançar nossas diversas manifestações. O Reggae nasceu para dar voz a quem não tem espaço de voz, e nossas produções são capazes de ampliar isso. Com os financiamentos conseguimos chegar onde é mais necessário”, avaliou Manciba.
Durante o cortejo, muitas pessoas que não tinham conhecimento sobre a situação em que se encontra o orçamento da cultura campo-grandense, foram comunicadas do calote de dois anos nos editais culturais aplicado pela prefeita Adriane Lopes e se interessavam por saber mais. Em várias paradas o professor Fernando Cruz explicava aos populares: “Queremos a implementação do Sistema Municipal de Cultura, o respeito pelo orçamento da cultura e execução para que haja produção cultural efetivamente nesta cidade”.
SÓ GANHA O PROPONENTE?
Design e Moda também tinham suas representações na manifestação. Boli Boli e Nair Gavilan explicaram que, ao apoiar um agente da Moda e Design, toda uma cadeia produtiva é movida. “São muitos tipos de profissionais dentro desse setor: estilistas, professores, costureiras, modelos, fotógrafos, maquiadores, produtores, técnicos de som, passarela, enfim... são muitos setores. Então, recursos públicos auxiliam no giro desse setor, para destravar novas coleções e conseguir competir com as lojas fast-fashion. Porque a produção em menor escala é uma produção mais custosa, porque essas fast-fashion, muitas usam mão de obra escrava, o que não acontece nas produções autorais, já que primamos pela conscientização de combater explorações dos profissionais. Então, o investimento cultural na moda combate esses problemas nesse setor”, explicou Boli Boli.
A moda autoral campo-grandense existe desde a fundação da cidade. “Entramos há pouco tempo na organização política em busca de direitos como editais, mas a Moda existe aqui desde o início dessa cidade e já perdemos muitos e muitos profissionais para outros estados, dado a dificuldade de se estabelecer aqui. Mas a gente sempre existiu e existe. Hoje somos 34 profissionais catalogados em Campo Grande, que, no entanto, abrangem um mercado gigante, porque a contratação para trabalhar num projeto é grande. Não é só o proponente que trabalha... Em média, um projeto atinge diretamente 30 profissionais”, apontou Nair.
Boli Boli comparou que, no FIC de 2022, 3 profissionais foram contemplados e cada um deles com R$ 150 mil consegue contratar cerca de 35 pessoas. “Imagina se ao invés de 3 projetos conseguíssemos contemplar 30? Se 3 projetos fomentar 30 projetos, então 30 projetos seriam 300 produtores... Assim fomentados toda a cadeia financeiramente, porque a moda é, inclusive, ligada a vários setores. Investir na cultura é garantir a ampliação e progresso desses setores”, defendeu.
CORRIGE PROBLEMAS NA SAÚDE...
Camila Santana, conhecida como Kitty, proprietária da Massas Capivara, de 38 anos, trabalha com cultura gastronômica desde 2012. Ela também é produtora cultural, organizadora da Feira São Chico, e diante disso, esteve na manifestação em prol das Leis de incentivo do município. “Com certeza os editais ajudam na preservação e resgate das nossas raízes culturais. Nos auxilia na criação de projetos que fortalecem nossas iniciativas culturais e nos ajudam a ganhar o pão-de-cada-dia. Desde 2013 batalho para sair do CLT e ajudar que pessoas talentosas saiam do CLT, porque nesta cidade existem cozinheiros e cozinheiras capazes de empreender culturalmente, fazer com que os pratos que são parte da identidade do nosso povo, chegue a todos. Estamos numa capital turística e com investimento teremos capacidade de criar projetos maiores que levem a culinária artística para todo o Brasil”, garantiu.
Kitty também observou que o incentivo a cozinhas saudáveis, que se originam da arte, são a saída para problemas crônicos de Campo Grande. “Esse é um trabalho de formiguinha, buscamos receitas dos antepassados. Quando as pessoas conseguirem entender que o que a gente come é o que a gente é, vai mudar... Por que nessa cidade abrem muitas farmácias? Já pensou nisso? É porque não estão apoiando o caminho da comida boa, comida dos nossos povos indígenas, da comida pantaneira... Não conseguimos chegar neles, então conseguindo apoiar projetos que valorizem isso, corrige esse problema de saúde da cidade”, opinou.
QUEBRAR PROTOCOLOS DO MERCADO...
O músico autoral, Sal, também esteve na manifestação representando setores da música. Ele analisou que trabalhar no setor, desde a sua adolescência, lhe dá uma experiência econômica de como funciona a engrenagem da música. “Trabalho com música desde adolescente, sempre foi uma parte muito importante do meu ganha-pão, apesar de em muitos momentos da minha vida ela não conseguir ser a fonte de renda principal”, disse.
Para o músico, o investimento em editais culturais auxilia no equilíbrio para o surgimento de novas tendências musicais. “O investimento estatal na cultura vem de uma necessidade de quebrar um dos protocolos do mercado que é só investir naquilo que já está fazendo um certo sucesso e por sucesso eu quero dizer realmente ganhando dinheiro. A iniciativa privada não tem a coragem, ou a vontade mesmo, de investir em algo que não seja 100% de segurança de retorno. Por isso, os artistas principalmente os que trabalham com autoral e proporcionam novas tendências, eles precisam de um investimento que não vá pensar simplesmente no lucro, no retorno, e sim vá pensar no desenvolvimento social e artístico-cultural da cidade”, disse.
Investimento públicos, para Sal, significa oferecer oportunidade para arriscar em tendências que representam o que há de mais contemporâneo na sociedade. “Apoiar projetos que sejam capazes de traduzir o agora, o urgente, apostar em projetos capazes de tentar traduzir o que as pessoas estão sentindo no momento. Por isso o governo precisa investir nesses projetos, porque o governo não tem o papel de gerar lucros, mas sim oportunizar o desenvolvimento da população”.
Sal avaliou que somente a execução dos editais já atendem a milhares de pessoas, tanto trabalhadores da cultura, quanto a população em geral. “Não só a música, mas todos esses projetos que são esses que alcançam as periferias. Também acaba auxiliando os artistas da periferia, que na maioria dos casos não tem acesso a equipamentos adequados, às vezes não conseguem um estúdio de qualidade para gravar sua produção, não conseguem acesso às ferramentas para desenvolver aquilo que poderiam estar desenvolvendo caso o estado estivesse cumprindo a sua função: oportunizar que elas se desenvolvem”.
O músico ainda acentuou que moralmente a prefeita de Campo Grande deveria executar um edital de R$ 12 milhões em 2024, visto a falha no investimento dos últimos 3 anos. “Se a gente fosse falar de valores com 3 anos de calote a prefeita tinha obrigação moral de liberar editais que recuperasse esse vácuo, mas não estamos cobrando nem isso, estamos pedindo um valor de R$ 8 milhões, mas R$ 4 milhões é um desrespeito com a cultura”.
ESTACA ZERO...
Fernando disse à reportagem que o último edital do Fomteatro publicado em 2021 foi pago somente em 2023 e classificou as perdas para a cidade. “Uma defasagem financeira terrível! Naquele edital, com meu grupo, Maracangalha, circulamos com espetáculos nas periferias e comunidades vulneráveis de Campo Grande e deu para perceber a necessidade, no São Conrado, no Noroeste deu para perceber o interesse pela comunidade, muita receptividade e participação. Quebra-se aquela ideia em que se subestima a população de que ela gosta só de determinada coisa. Não, ela está ali sedenta para aproveitar a diversidade cultural. A cidade perdeu tudo. Só pelo não cumprimento dos editais nos perdemos tudo, retrocedemos. E isso impacta diretamente no cotidiano da população, na violência devido a falta de formação dos jovens, perdemos em chegar às crianças e mulheres vítimas de violências nas periferias, sobretudo. Então, para mim, numericamente perdemos tudo ao não ter financiamento para trabalhar, nós perdemos, a cidade perdeu porque não chegamos lá. Estamos na estaca zero”, completou.
CRONOGRAMA RAZOÁVEL
Romilda Pizani finalizou a entrevista explicando qual a proposta razoável que caso a prefeitura faça ao movimento, poderia ser aceito. “O cronograma que ela ofereceu de publicação do edital em 22 de janeiro, mas com valor de R$ 8 milhões seria algo razoável para a cultura. E tudo dentro do prazo, edital, pagamento e execução. Isso é o mínimo. A classe artística dá conta de colocar sua produção na rua, desde que o cronograma seja respeitado. R$ 8 milhões é um investimento pequeno para o tamanho da classe, mas é aceitável pois compreendemos a importância de levar cultura para o povo dessa cidade”.