O diretor-presidente da Fundação Municipal de Esportes (Funesp) de Campo Grande (MS), Maicon Luis Mommad reuniu-se na manhã de 6ª.feira (2.fev.24) com a artista visual Thais Maia, de 28 anos, e Camila Santana, conhecida como Kitty, proprietária da Massas Capivara, de 38 anos, responsável pela Feira São Chico que acontece na Orla Morena.
O encontro ocorreu três dias após um mural de 25 metros feito por Thais, Karol e Gabriel GB ser destruído por três homens dentre os quais estava Eduardo Cabral, de 60 anos, presidente da Associação de Moradores do Bairro Cabreúva (AMBC). Ele foi filmado jogando tinta no mural.
Durante conversa com Thais e Kitty na Funesp, Maicon disse que diante da situação de ataque à artista e sua obra, a entidade quer, em conjunto com os grafiteiros, realizar um projeto para que a Orla Morena seja grafitada de maneira regular. Para isso, Maicon disse que também irá conversar com o presidente da associação, Eduardo, e com os moradores do Bairro Cabreúva, a fim de mediar o conflito.
Maicon apontou que atualmente a responsabilidade pelo espaço onde estava o mural é da Fundação de Esporte da cidade, mas que a Secretária de Cultura e Turismo, Mara Bethânia Gurgel telefonou a ele afirmando que gostaria de trabalhar junto com a Funesp em um projeto para os grafiteiros na Orla.
CRONOLOGIA DO CASO
Como mostramos aqui no TeatrineTV, ao longo de 7h sob o Sol no dia 29 de janeiro, Thais, Karol e Gabriel GB se empenharam para pintar um mural com personagens e letras. Ao todo, o trio investiu R$ 2 mil do próprio bolso em tintas e, enquanto pintavam, interagiam com os moradores.
O mural ficou pronto no fim do dia 29, mas pode ser apreciado por poucas horas, pois segundo Thais Maia, na tarde de 30 de janeiro, Eduardo, juntamente com Francisco (Chico) vice-presidente da associação de moradores do Cabreúva e o advogado do Procon (MS) e professor, Munir Sayeg, que mora em frente a Orla, teriam ido até o mural reclamando direitos sobre o espaço. Além disso, Thais relatou que ela e Karol foram alvo de ofensas e submetidas a situação de humilhação em frente aos moradores, que acabaram por sair em defesa das artistas.
No dia seguinte ao ataque, em 31 de janeiro, Thais Maia usou as redes sociais para tornar público o ataque que havia sofrido. Além de longo desabafo ela compartilhou um vídeo de Eduardo Cabral jogando tinta branca para danificar um esboço de grafite. Rapidamente, o caso repercutiu na imprensa. Na noite do dia 31 de janeiro, Eduardo falou ao TeatrineTV que havia convocado canais de TV de Campo Grande para dar entrevista no local dos fatos na manhã da 5ª.feira (1.fev), onde daria esclarecimentos sobre o ataque ao mural.
A reportagem do TeatrineTV também esteve na manhã do dia 1º na Orla para ouvir Eduardo e lá também compareceu Thais e colegas dela do Hip Hop. Durante as entrevistas aos veículos de comunicação, houve novas discussões entre Thais e Eduardo. Quando indagado pela equipe do TeatrineTV, Eduardo terminou por se exaltar com o repórter do ao ser questionado sobre a diferenciação entre Patrimônio Público e Patrimônio Público Cultural.
PATRIMÔNIO E O GRAFITE
O Superintendente do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), em Mato Grosso do Sul, João Santos, explicou à reportagem nesta 6ª feira (2.fev.24), a diferença entre Patrimônio Público e Patrimônio Público Cultural. “Tudo aquilo que é de propriedade do município, do estado ou do governo federal é Patrimônio Público, mas não quer dizer que todos eles sejam Patrimônio Público Cultural. O Patrimônio Público Cultural ou de interesse cultural são aqueles que são tombados, ou aqueles que estão em algum lugar que desenvolve alguma atividade cultural. Temos algumas diferenciações. Nem todo Patrimônio Público de cunho cultural também é protegido, ou tombado, então a gente tem uma gama de possibilidades na diferença entre Patrimônio Público e Patrimônio Público Cultural. Ambos são protegidos por lei. Ambos recebem algum tipo de sanção só que cada um vai estar dentro de questões jurídicas distintas. Por exemplo: Patrimônio Cultural, independente se ele é público ou privado, ele é regido pela lei do Direitos Difusos, que entra junto com Patrimônio Ambiental, então crime ambiental. Então, você violar, depredar, mutilar o Patrimônio Cultural faz parte dos direitos difusos e se enquadra em crime ambiental também”.
João esclareceu que no local onde o mural de Thais estava e foi atacado pelos homens, a responsabilidade exclusiva é do município. “Sobre a ação do presidente da associação, lá naquele espaço, aquele espaço não é uma área tombada. A área tombada do Iphan vai só até a ‘antiga nova rodoviária’ , que é o Belas Artes, é só o trilho. Então, só o trilho ele faz aquela curva lá da Eça de Queiroz e vai até o novo Belas Artes, só o trilho tombado. A partir do início da Orla Morena, até a Duque de Caxias, já não é mais tombado, já não é área de entorno. Então o Iphan não tem nenhum tipo de legislação, de proibição, de autorização ou algo nesse sentido. O episódio ocorreu numa área que não tem gerência do Iphan, ali é uma área da prefeitura municipal”.
Ainda segundo João, o Iphan não tem uma diretriz específica para o grafite, principalmente como uma manifestação artística de rua. “Não temos uma legislação, uma proibição, varia muito de caso a caso. Hoje, se for instalado um grafite no Patrimônio Cultural, em alguma edificação tombada pelo Iphan, isso precisa de autorização, precisa passar pelo Iphan que autoriza ou não. Isso vai depender muito se é na edificação, se é no muro da identificação, então vamos ter algumas variações”, apontou.
O chefe do Iphan adiantou que pretende realizar uma ação de valorização ao grafite no tapume da obra na Ferrovia. “Nossa obra na Ferrovia da nossa sede vai retomar, a obra ficou parada, a empresa abandonou, daí tivemos todo o trabalho da burocracia, foi feita a licitação, uma empresa ganhou essa licitação e vamos iniciar essa obra agora na semana que vem. E o primeiro passo vai ser o fechamento com tapume e estamos estudando uma ação de educação patrimonial com o grafite. Então, já iniciei uma conversa com o Mareco, que agora está dando aula, e ver se a gente consegue fazer uma ação de educação patrimonial tendo o grafite como suporte para o ensino-aprendizado”.
Para o Superintendente ao invés de ser atacado, o grafite deveria ser valorizado em espaços públicos culturais. “Eu, enquanto Superintendente, acredito que o grafite enquanto uma manifestação artística de rua ela precisa ser valorizada, ela precisa ser promovida e nada mais natural que a gente consiga fazer essa atividade ali nessa área, uma área cultural da nossa cidade, um reduto de artistas, e a oportunidade de a gente ter um ambiente mais saudável”, considerou.
Na avaliação de João, tanto grafite como a pixação tem valor, o primeiro no campo social e o segundo no campo artístico. “A pixação historicamente é uma manifestação de protesto, de formação de grupos e de identidades e de comunicação da Rua, mas em contraponto o próprio grafite traz um cunho de arte da rua, das diversas formas artísticas e de vários suportes de arte que a gente tem. E está mais que comprovado que arte não é só aquilo que está em Museus, antiquários ou na casa de quem detém poder econômico. A arte, a manifestação artística está na rua, ela sobrevive da rua, ela se alimenta da rua, ela se comunica na rua, e o grafite é um exemplo máximo disso. E traz um ambiente saudável, traz um ambiente se levarmos em consideração os dias atuais, um ambiente instagramável. Você consegue chamar a atenção da população para desenhos, para os coloridos e na nossa ação ali com tapumes ainda faz um papel de educação patrimonial”, defendeu.
O chefe do Iphan lembrou que valorização do grafite deve partir do poder público, que no entanto, às vezes acaba criminalizando a arte de rua, como num caso denunciado aqui no TeatrineTV, em que o governo descaracterizou a arquitetura da Escola Estadual Maria Constança de Barros Machado, na Rua Marechal Cândido Mariano Rondon, n° 451, no Bairro Amambaí, em Campo Grande (MS). A situação ocorreu no último ano da gestão Azambuja, um dos piores gestores para Cultura que deixou como herança a construção de uma estrutura predial em meio ao Patrimônio Histórico projetado por Oscar Niemeyer, um dos maiores arquitetos brasileiros. "A gente já teve muita discussão. Eu lembro de há uns dez anos atrás participar de muita discussão sobre os grafites nos muros da Escola Maria Constança de Barros. Foi um auê, as pessoas não queriam e falavam que seria uma depredação, uma violação ao Patrimônio Cultural, mas a reforma que foi feita lá é muito mais prejudicial. Ela foi muito mais mutiladora do Patrimônio Cultural do que grafites nos muros, o qual a gente estava pleiteando há dez anos. Então, a violência não está na rua, a violência está no poder público que autorizou uma obra que descaracterizou a Escola Maria Constança de Barros Machado. Enquanto isso, há dez anos queríamos fazer um mural a céu aberto nos muros da Escola Maria Constança de Barros Machado", lamentou.
Para o servidor federal, muitas vezes o próprio detentor do poder com preconceito não aceita uma intervenção artística como o grafite sob o argumento de 'proteção' do Patrimônio. "Então, assim, há inversão de valores, né? Porque falavam que o grafite iria prejudicar o Patrimônio, que o grafite ia mutilar o Patrimônio, que o grafite ia degradar o Patrimônio. E quem quem degradou o Patrimônio? Uma ação projetual que descaracterizou aquele Patrimônio e quase que irreversível. O grafite você pinta, você coloca novo chamamento para artistas e a gente teria um grande painel artístico numa principal avenida, num parque, enfim. Daí a gente percebe o quão preconceituosa que ainda é a nossa cidade e o quanto a arte de rua ainda é marginalizada e criminalizada”, finalizou.