A Embaixada Indígena, novo espaço cultural de Campo Grande (MS), inaugurado na noite do sábado (8.jun.24), deu uma verdadeira aula de valorização e respeito já na sua primeira noite de atividades no Centro.
Idealizada em 2018 e executada em 2022 dentro Projeto Nacional Aldear a Política, proposta da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), a Embaixada na Capital de MS é comandada por Bárbara Albino e Tanaíra Sobrinho. Antes a Embaixada funcionava na casa delas, mas agora ganhou um prédio na Rua 14 de Julho, esquina com a Rua Maracaju.
O espaço foi colorido com os traços do inconfundível artista de rua San Martinez. Próximo a um palco montado no cruzamento das ruas, encontramos San claramente emocionado por ter seu trabalho reconhecido. “Esse trabalho foi durante umas duas semanas de montagem, com as figuras indígenas daqui e a ministra que ia vir. Como eu me reconheço como Guarani, minha família é do Paraguai, então eu achei da hora, é uma honra”, introduziu.
San explicou à reportagem algumas das propostas da arte impressa nas paredes da Embaixada. “Desse lado é mãe terra, com as raízes, abraçando o verde. Com a energia saindo do umbigo dela, o Guaraná... Do outro lado os rostos indígenas, Marçal de Souza, a MC Anarandá de Dourados, e a ministra e outras lideranças...”, detalhou.
Para o artista visual, a Embaixada devolve um espaço de pertencimento dos povos indígenas. “Eu acho que tem que ocupar o Centro e trazer as figuras indígenas, as etnias para cá, como posse do que nos pertence, da cidade. Isso é força, poder, isso é gratificante e afirma o que nós somos. É gratificante estar participando disso”, comentou.
San foi remunerado pelo serviço e mencionou a importância de que o estado reconheça os talentos locais. “É buscar um artista regional, desse nicho, que eu faço grafiti na rua, faço os Guarani e outras etnias indígenas na rua já tem uns três anos, então, para mim isso é uma construção. Foi uma energia que veio até se conectar nesse dia. Não foi assim, do nado, veio porque tinha que vir. Tem que valorizar os artistas que trabalham 24h que trabalham com isso na rua é da hora e ser remunerado pelo nosso trabalho é bom demais”, completou.
Para marcar o momento especial a rua foi fechada por um grande palco. Ocorreram apresentações tanto na rua quanto no palco.
Já no início do evento, a ministra dos Povos Indígenas Sonia Guajajara e diversas lideranças políticas foram recebidos com uma dança terena protagonizada por vários jovens indígenas, de algumas aldeias de MS. “São vários jovens de Aquidauana, da região de Taunay-Ipegue que num grupo só vem se apresentando. Nos apresentamos na posse da Sonia Guajajara em Brasília e estamos aqui agora cumprindo mais um papel”, esclareceu Ya, instrumentista do Grupo Ihíyoti Kipâhi.
Na avaliação de Ya, a abertura da Embaixada no Centro da cidade deve ser exaltada, mas ele observou que isso já deveria ter ocorrido há muito tempo. “Já devia estar instalada há muito tempo, por se tratar de um estado que tem uma população indígena enorme. E estar dentro da Capital é falar sobre resistência, poder, cultura e continuidade. Um lugar no Centro é como no caso das comunidades urbanas, nos dá oportunidade de debater ancestralidade e resistência”, opinou.
Combatendo o racismo religioso, logo na sequência, um ritual dos Povos de Terreiro ocorreu em frente a Embaixada.
Pouco depois, um dos mais importantes e tradicionais grupos de Teatro de Mato Grosso do Sul: o Imaginário Maracangalha, apresentou o premiado espetáculo ‘Tekohá’, que conta a saga de Marçal de Souza em Mato Grosso do Sul.
Após a apresentação conversamos com o professor, ator, produtor e dramaturgo, Fernando Cruz, sobre o que representa o momento para o grupo. “Para nós do Maracangalha o importante de estar aqui hoje é demarcar juntamente com os povos indígenas nesse momento histórico. Para nós isso aqui é uma demarcação de território, no Centro da cidade a Embaixada Indígena. Os indígenas com a sua luta no centro da cidade, no centro do estado. Isso é chegada, é conquista, simbólico demais. A partir dessa conquista essa cidade passa a ter outro paradigma cultural, porque a cultura indígena é a grande referência desta cidade, deste estado. Não existe apagamento que derrube isso. Isso dá visibilidade e dá força para o movimento indígena que precisa ter cada vez mais seu reconhecimento histórico de território, nação e identidade”, disse.
Ainda de acordo com o diretor e fundador do Maracangalha, apresentar ‘Tekohá’ na inauguração da Embaixada é demarcar a utilização da Rua 14 de Julho pelo teatro. “Para nós do teatro de Rua é um espaço de demarcação também, pois o movimento indígena e nossa grande inspiração, de resistência, de luta, de enfrentamento em defesa da justiça, da democracia, da igualdade, do meio ambiente...É o que o mundo precisa nesse momento de crise climática, pois todos sabem que preservar o meio ambiente é único caminho para reverter a destruição do planeta”, considerou.
Provocado a falar sobre o que achava das ausências da prefeita de Campo Grande, Adriane Lopes, da secretária municipal de Cultura e Turismo (Sectur), Mara Bethânia Gurgel, do presidente da Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul (FCMS), Eduardo Mendes, do secretário de Cidadania, Turismo e Cultura (Setesc), Marcelo Miranda no evento, tendo apenas a secretária de Cidadania, Viviane Luiza enviado uma representante a inauguração da Embaixada Indígena, Fernando foi categórico: “Essa ausência só legitima a história do pais: eles sempre estiveram ausentes! Só estiveram presentes na hora de extrair a riqueza e na hora de destruir vidas das lideranças indígenas. 500 anos, milhares de lideranças foram assassinadas, o povo Yanomami hoje morrendo. Esse ano várias comunidades indígenas foram atacadas pela intolerância e pela ganância, pois são as únicas áreas preservadas. Então, isso só mostra que eles sempre estiveram ausentes. Por outro lado, tivemos aqui uma ministra indígena, deputadas federais indígenas, lideranças indígenas, mostrando que os indígenas são protagonistas e donos dessa terra que eles sempre estiveram presentes”, completou.
Na noite inaugural, ainda foi atração artística o número da Cia Apoema, protagonizado por Nathalia Maluf e Roberto Pimenta. A proposta envolve acrobacias com equipamentos de circo e dança, que reverbera a mão de obra, o trabalhador. “Esse número dos operários na realidade retrata a luta da classe trabalhadora em específico, mas a Cia Apoema tem o espetáculo Terra Brava, que está sendo remontado, e que traz um pouco da ascendência indígena de um dos personagens, essa que sofreu bastante com o apagamento histórico-cultural”, contou Maluf.
A artista celebrou o convite da Embaixada ao grupo para a inauguração histórica. “É uma honra pra nós estar aqui hoje, na inauguração do novo espaço da Embaixada Indígena, esse local também é um marco para a cidade, e estar fazendo parte desse dia vai de encontro com nossos fazeres humano e artístico. Além de ser também um novo ponto de trocas e encontros, e é sempre muito bom quando é aberto um novo espaço cultural, né? A cidade toda ganha com isso, é também um local de luta e resistência, que vai ser porta voz de muitas pautas necessárias”, pontuou Maluf.
Outra atração, Keertana apresentou um número performático envolvendo maláveis com fogo. A reportagem não conseguiu falar com a artista ao final do evento.
Fechando a noite, apresentou-se no palco o músico Begèt de Lucena, num show temático, repleto de ancestralidade. “Eu sou um poeta apaixonado pela coisa brasileira, por tudo isso que a gente experienciou nesta noite, uma noite histórica a inauguração da Embaixada Indígena. São pautas que eu também englobo apesar de não ser meu lugar de fala, mas eu como um poeta, artista brasileiro e ativista, então eu me sinto muito feliz, lisonjeado”.
Begèt revelou que já havia se apresentado no ato fundamental da Embaixada, que antes funcionou na casa das idealizadoras. “Há dois anos me apresentei no outro espaço que eles tinham, eu fico muito feliz com o convite, estou todo arrepiado. Eu preparei um show voltado para isso, com esse sentimento que tenho dentro de mim enquanto artista colaborador da causa indígena", observou.
O músico finalizou convocando os demais colegas da arte a ocupar a Embaixada, que para ele é um espaço espiritual. “Eu não penso no amanhã, eu penso que desde ontem, desde muito antes esse espaço já estava aqui, para nós artistas ocuparmos também. Me sinto feliz! Confesso que quando me convidaram eu achei que era uma coisa mais intimista, mas quando cheguei aqui tomei um susto, fiquei tremendo com tanta energia, mas foi uma noite maravilhosa. Eu espero que se repita e que esse espaço se sagre como um lugar para todos os povos, que os artistas possam ocupar com sua arte, sua coisa. É isso, é incrível ter esse espaço aqui agora”.
Para ver mais momentos das apresentações artísticas na inauguração da Embaixada Indígena em Campo Grande (MS), acesse a galeria abaixo: