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Política Cultural

​Decretos 'mortais' para cultura brasileira que serão revogados

​Decretos 'mortais' para cultura brasileira que serão revogados

Por Redação • 19/12/2022 • 17:30

Nos últimos anos, a secretaria especial de Cultura extinguiu conselhos deliberativos, excluiu representantes LGBTQIA+, censurou linguagem neutra em projetos e permitiu a destruição de cavernas, antes consideradas patrimônio cultural. É o que aponta o Revogaço, estudo realizado pela Fundação Lauro Campo Marielle Franco, do PSol, e pela Fundação Rosa Luxemburgo, que analisou decretos e portarias de 20 áreas setoriais das políticas públicas do governo Federal. Reportagem originalmente publicada no Nonada.

A análise recomendou a revogação de cerca de 200 decretos, 16 na área da cultura. A equipe de transição do governo Lula vem anunciando que deve divulgar em breve quais medidas do governo Bolsonaro devem ser revertidas e se mostrou disposta a adotar o Revogaço proposto pelas duas fundações.

Na área da cultura, o estudo aponta também que os decretos centralizaram as decisões nas mãos dos secretários da pasta, em especial do secretário de Fomento e Incentivo à Cultura, André Porciuncula, responsável pela lei Rouanet. Boa parte das medidas têm relação com a extinção de órgãos de controle e deliberação da sociedade civil dentro da pasta da Cultura, como a dispensa de linguistas, falantes e pesquisadores no Comitê de Diversidade Linguística.

Segundo o documento, os decretos modificaram leis e auxiliaram o governo na proposta de  “aniquilamento das políticas culturais e criminalização de trabalhadores do setor”. “Ao se valerem do apelo populista do discurso anticorrupção, sem qualquer embasamento fático e municiados pelas inúmeras fake news sobre o uso de recursos públicos para o fomento cultural, interromperam programas exitosos como a Política Nacional Cultura Viva e asfixiaram mecanismos que, apesar de demandarem aprimoramentos, são legítimos e bem-sucedidos, como a Lei 8.313, popularmente conhecida como Lei Rouanet”, conclui o documento.

A Fundação Palmares, responsável por políticas voltadas aos quilombolas e à cultura afrobrasileira, também foi analisada. “O levantamento mostra que as medidas que buscaram a destruição do órgão não se deram somente a partir de mecanismos institucionais, mas se constituíram de forma ideológica e discursiva”, apontam, lembrando da tentativa de mudança no acervo da instituição. “A gestão bolsonarista utilizou como argumento a necessidade de modernização do acervo para renunciar a obras importantes do pensamento negro mundial”.

Quanto à titulação de comunidades quilombolas, o ex-presidente da Fundação, Sergio Camargo, publicou medidas “como a retirada das comunidades quilombolas do processo de licenciamento ambiental em seus territórios; a extinção dos comitês gestores e órgãos colegiados que garantem a participação social nos processos decisórios da Fundação”, além de “medidas relacionadas ao dirigismo ideológico para a seleção de personalidades negras homenageadas no site da Fundação”.

Nesta semana, os servidores da secretaria e dos órgãos ligados à pasta entregaram ao governo de transição e à futura ministra da Cultura, Margareth Menezes, um relatório interno de 71 páginas com diagnósticos e propostas. O Nonada Jornalismo teve acesso ao dossiê. De forma geral, os diagnósticos realizados pelos servidores convergem para problemas recorrentes: gestão autoritária dos diretores indicados pelo governo Bolsonaro (PL), falta de transparência nos processos internos, descontinuidade de programas de fomento ao setor cultural, evasão de servidores devido a questões de saúde e risco à segurança e à preservação dos acervos físicos e digitais. 

Tanto o relatório dos servidores como o Revogaço, além de recomendações e consultas de outros setores da classe trabalhadora da cultura, devem embasar a construção de um relatório final do GT da Cultura no governo de transição, a ser apresentado entre os dias 20 e 22 de dezembro.

Confira o que o estudo concluiu sobre cada decreto:

DECRETO NO 9.891/2019: GOVERNO RETIRA DECISÃO DO CONSELHO NACIONAL DE POLÍTICA CULTURAL (CNPC) E EXCLUI REPRESENTANTES LGBTQIA+

O governo Federal editou o Decreto no 9.891 em 27 de junho de 2019, que dispõe sobre o Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC), não só reduzindo seu tamanho, mas alterando sua composição e seu funcionamento. Em seu artigo 2o, o Decreto no 9.891 estabelece caráter exclusivamente consultivo, e não deliberativo, ao CNPC.

A pretexto de reduzir a estrutura do CNPC, o mesmo decreto prevê a exclusão dos colegiados setoriais quando extingue as representações realizadas por edital público para composição dos representantes dos 18 Colegiados Setoriais. Há, também, nesse decreto, a exclusão de representantes das expressões culturais LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) e demais grupos da diversidade sexual e cultural brasileiras, ato flagrantemente lgbtfóbico.

DECRETOS NO 9.938/2019 E DECRETO NO 11.119/2022: GOVERNO ALTERA A COMISSÃO TÉCNICA DO INVENTÁRIO NACIONAL DA DIVERSIDADE LINGUÍSTICA

A principal e mais grave alteração instituída pelo referido decreto foi a mudança na composição da comissão técnica, de modo a excluir a participação da comunidade científica e de representantes dos estados e municípios.

Em 1º de julho de 2022, após 3 anos de funcionamento da Comissão sem estas participações, o governo editou novo decreto, de no 11.119, incluindo a possibilidade de “convidar representantes de comunidades linguísticas dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, além de especialistas, sem direito a voto, para participar de suas atividades”. 

DECRETO NO 10.107/2019 E DECRETO NO 10.108/2019: GOVERNO EXTINGUE MINISTÉRIO DA CULTURA

Tais decretos, somados à Medida Provisória no 870, convertida na Lei no 13.844, constituem o maior ataque em nossa história recente à institucionalidade das políticas culturais na organização do Estado Brasileiro, uma vez que configuram o arcabouço normativo que dá sustentação à inexistência de um Ministério específico para a Cultura no Brasil.

DELIBERAÇÃO DE DIRETORIA COLEGIADA DA ANCINE NO 999-E/2020: CANCELA OS SALDOS DE CHAMADAS PÚBLICAS E EXTINGUE O REGULAMENTO GERAL DO PROGRAMA DE DESENVOLVIMENTO DO AUDIOVISUAL (PRODAV).

Em reunião extraordinária, a Agência Nacional de Cinema (Ancine) decidiu cancelar os saldos orçamentários reservados para a realização de diversas chamadas públicas de fomento ao setor audiovisual. Tal deliberação, na prática, significou o cancelamento do repasse desses valores mesmo que existam como saldo no Fundo Setorial do Audiovisual (FSA).

Esta mesma deliberação definiu pela extinção do regulamento geral do Programa de Desenvolvimento do Audiovisual (Prodav), estabelecendo que, a partir de então, as normas, diretrizes e critérios serão definidos separadamente em cada edital do Programa. Medida que abre espaço para casuísmos a partir de regulamentos distintos, tornando o processo ainda mais lento e burocrático.

A diretoria da Ancine também autorizou, por meio desta deliberação, apenas o lançamento de chamadas públicas para financiar produções cinematográficas voltadas à ocupação do mercado de salas de exibição, desenvolvimento de jogos eletrônicos multiplataforma e séries de animação para TV, não incluindo no rol destinado à programação televisiva projetos de outras naturezas.

PORTARIA SEFIC/SECULT/MTUR NO 604, DE 27 DE OUTUBRO DE 2021: GOVERNO CENSURA A LINGUAGEM NEUTRA EM PROJETOS FINANCIADOS

Por meio de sua Secretaria Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura, a Secretaria Especial da Cultura do Ministério do Turismo publicou Portaria em que veda, nos projetos financiados pela Lei 8.313/1991, popularmente conhecida como Lei Rouanet, “o uso e/ou a utilização, direta ou indiretamente, além da apologia, do que se convencionou chamar de linguagem neutra”. O teor da referida Portaria, além de flagrantemente autoritário, possui nítidos objetivos de promover a censura ideológica na realização de projetos culturais.

Trata-se ainda de normativa que contraria a própria Lei 8.313 que, em seu artigo 22, determina que “Os projetos enquadrados nos objetivos desta lei não poderão ser objeto de apreciação subjetiva quanto ao seu valor artístico ou cultural” e, em seu artigo 39, estabelece que “Constitui crime, punível com a reclusão de dois a seis meses e multa de vinte por cento do valor do projeto, qualquer discriminação de natureza política que atente contra a liberdade de expressão, de atividade intelectual e artística, de consciência ou crença, no andamento dos projetos a que se refere esta Lei”.

DECRETO NO 10.755/2021: GOVERNO ENFATIZA INCENTIVO À ARTE SACRA

O Decreto no 10.755, de 26 de julho de 2021, instituiu diversas modificações na estrutura de gestão do Programa Nacional de Apoio à Cultura (Pronac) estabelecido pela Lei no 8.313, popularmente conhecida como Lei Rouanet. Esse ato normativo institucionalizou, por meio de alterações e decretos anteriores, traços ideológicos do governo Bolsonaro agora impostos à produção cultural brasileira.

Foram incluídas outras finalidades antes não existentes, como atividades culturais de caráter sacro, clássico e de preservação e restauro de patrimônio histórico material, tombados ou não. Uma das alterações mais significativas trazidas pelo Decreto no 10.755, de viés nitidamente autoritário, diz respeito à atuação e composição da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura (CNIC), que desempenhava um papel verdadeiramente deliberativo no processo de aprovação de novos projetos. Com o novo regulamento, a CNIC torna-se instância recursal meramente consultiva, enquanto as decisões finais quanto à aprovação ou não dos projetos são prerrogativa da Secretaria Especial da Cultura.

PORTARIA SECULT/MTUR NO 44/2021: VEDA EXIGÊNCIA DE PASSAPORTE DE VACINA EM PROJETOS CULTURAIS BENEFICIADOS PELA LEI ROUANET

O ato normativo determina ainda que “Havendo decreto, lei municipal ou estadual, que exija o passaporte, o proponente terá que adequar seu projeto ao modelo virtual, não podendo impor discriminação entre vacinados e não vacinados nos projetos financiados pelo Programa Nacional de Apoio à Cultura – PRONAC”.

PORTARIA SEFIC/SECULT/MTUR NO 210/2021: GOVERNO PRIORIZA EVENTOS SEM PÚBLICO NA LEI ROUANET

Por meio de sua Secretaria Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura, a Secretaria Especial da Cultura do Ministério do Turismo publicou Portaria em que determina que serão priorizadas as análises das propostas culturais, (…) aquelas que não envolvam aglomeração presencial de pessoas, tais como de eventos virtuais, de edição de livros e de obras de restauro do patrimônio histórico, museus e preservação do acervo.

A referida Portaria, ainda em vigor, não contou com qualquer embasamento na legislação atual e vem prejudicando a gestão de um dos principais mecanismos de fomento à cultura do país. Tal medida tem atrasado a apreciação e publicação de projetos culturais, em sua maioria com execução futura, o que nada tem a ver diretamente com a situação atual da emergência em saúde pública ocasionada pela pandemia da covid-19.

DECRETO NO 10.935/2022: GOVERNO PERMITIU A DESTRUIÇÃO DE CAVERNAS, ANTES CONSIDERADAS PATRIMÔNIO CULTURAL

A medida permitiu que empreendimentos possam impactar, de forma irreversível, qualquer caverna, independentemente do seu grau de relevância, inclusive cultural, mediante autorização do órgão ambiental.

Enquanto o decreto antecessor determinava que “as cavidades naturais subterrâneas existentes no território nacional constituem patrimônio cultural brasileiro, e, como tal, serão preservadas e conservadas de modo a permitir estudos e pesquisas de ordem técnico-científica”, o decreto atual permite que “o órgão ambiental licenciador autorize a destruição total ou parcial de cavernas de máxima relevância por atividades ou empreendimentos considerados “de utilidade pública”.

INSTRUÇÃO NORMATIVA SECULT/MTUR NO 1 E 2/2022: GOVERNO ALTERA PRAZOS E TETO DE CAPTAÇÃO E DE CACHÊS DA LEI ROUANET

A medida traz mais entraves para agentes culturais que dependem de projetos

culturais incentivados pela Lei para o desenvolvimento de suas atividades profissionais. Entre esses entraves, destacamos a drástica redução nos tetos de valores e prazos para captação de recursos junto à iniciativa privada, assim como nos valores de cachês individuais, definidas sem a apresentação de quaisquer parâmetros objetivos que as justifiquem.

Segundo o estudo, o próprio governo federal, por meio desses atos, criou empecilhos para que profissionais possam ser adequadamente remunerados de acordo com as especificidades de sua atuação em cada projeto cultural beneficiado pelo incentivo da Lei Rouanet.

PORTARIA CNPC/SECULT/MTUR NO 2 E 3/2022: CONVOCAÇÃO DA CONFERÊNCIA NACIONAL DE CULTURA

As Conferências de Cultura são um importante instrumento de participação e controle social no âmbito das políticas públicas de cultura. A portaria determina que “A etapa nacional da 4a CNC será realizada no período de 4 a 8 de dezembro de 2023, na modalidade virtual, por meio de plataforma disponibilizada pela organização da conferência.” A obrigatoriedade de que a 4a Conferência Nacional de Cultura aconteça na modalidade virtual, além de trazer prejuízos consideráveis na qualidade da participação de cidadãs e cidadãos no evento, pode excluir milhares de pessoas que não possuem acesso pleno aos meios digitais.

DECRETO NO 11.240/2022: ALTERA ESTRUTURA INTERNA DA FUNARTE

A Fundação Nacional de Artes (Funarte) foi criada em 1975 e é o órgão do Governo Federal que tem por atribuição “promover e incentivar a produção, a prática, o desenvolvimento e a difusão das artes no país”. transferindo mais de 50 cargos em comissão e funções de confiança para a Secretaria Especial de Desburocratização, Gestão e Governo Digital do Ministério da Economia. Além disso, o referido decreto promoveu outras alterações no estatuto da Fundação, alterando substancialmente sua estrutura organizacional.


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Tags: #TeatrineTV, André Porciuncula, fomento cultural, Fundação Palmares, governo Bolsonaro, governo Lula, Patrimônio Cultural, Política Nacional Cultura Viva, Revogaço, secretaria especial de Cultura

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