Eu sou autora do livro “Era uma feira aonde a gente ia de chinelo...” e estudei, durante meu mestrado, as transformações passadas pela Feira Livre Central desde 1925 até 2004, quando ela saiu das ruas e foi parar em um lugar fixo e construído para seu funcionamento, ordenada como um condomínio.
Atualmente, existe um projeto grandioso e de alto valor monetário para que a Feira (sem ser livre) Central seja novamente construída na Esplanada Ferroviária, com cara de shopping. Como campo-grandense, me senti provocada a dizer o que penso sobre isso e abrir uma discussão, já que tenho lugar de fala, pois estudei muito para isso.
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A Feira Livre Central de Campo Grande morreu em 2004, e não há nada que se possa fazer. O evento feira se estabelece por uma relação comercial livre de ambulantes reunidos em um espaço aberto, com oportunidades de barganhas e negociações entre produtores e consumidores, ou entre vendedores e passantes. As feiras são feitas pelas pessoas, não por regras, são bens patrimoniais imateriais que pela cultura se materializam em espaços urbanos.
As feiras de rua se firmam como tal na sociabilidade que permitem e em manterem produtos de alguma forma específicos, como resultantes de produção caseira ou artesanal, além das comidas típicas. Existem feiras apenas de venda de antiguidades, outras de artesanatos, outras de roupas, e as mais amplas, que agregam todo tipo de produto. Mas todas denominadas feiras são abertas, e os comerciantes podem realizar seu trabalho como melhor lhes aprouver. Não é o caso da Feira Central.
O condomínio criado pela associação de feirantes se apropriou da história da feirona de rua, que acontecia às quartas-feiras e aos sábados, que começava durante as tardes e alimentava, com sobá ou espetinho, os apreciadores das noites campo-grandenses até as madrugadas.
Agora, a associação conseguiu novamente movimentar o campo político para que, por meio de verbas, se faça um mercado, um shopping, um edifício de compras, seja lá o que for, no espaço que é tombado como patrimônio pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), pela Secretaria Municipal de Cultura e Turismo, em âmbito municipal, e, em âmbito estadual, pela Fundação de Cultura de Mato Grosso do Sul (FCMS), o complexo da rede ferroviária de Campo Grande. Ferindo normas de preservação e de construção em meio à Esplanada, lidando com modernismos de nome (o novo será Feira Turística e Cultural), ainda querem que essa “baleia no seco” seja aprovada como continuação patrimonial da história da Feira Livre Central.
Nem questiono o uso do dinheiro, mas coloco minha percepção acadêmica para o uso e o abuso do patrimônio público e das invenções de passado de que somos vítimas, seguindo pelo caminho que essa construção nos empurra. A feira perdeu seu encanto, não tem gritos do vendedor de abacaxi, não tem mais o sanfoneiro, não tem só comida típica, não funciona nas madrugadas, possui horários de abertura e de fechamento. O sobá muitas vezes é congelado ou guardado em geladeiras, não tem indígenas com mercadorias sazonais, não tem burburinho, não tem cheiro de pão caseiro, cheiro de verdura, não tem especificidade.
Advirto aqueles que me chamarem de saudosista que de maneira nenhuma me sinto assim. Eu não quero que nada pare no tempo, mas defendo que o que passou está morto, e o objeto de meu estudo como historiadora é esse morto. Não existe resgate do que já passou, sinto muito. O tempo levou a feirona embora, e se a sociedade não se atentar, logo estará defendendo um shoppingzão, enganando turistas com discurso de feira de quase 100 anos de existência.
Se a Feira Central quer usufruir do turismo, que era forte e autônomo na feirona de rua, deveria pensar em ser diferente de um shopping, deveria pensar menos em capital e mais em social. Sendo assim, refletir como o patrimônio só se afirma na significação que seus usuários constroem, olhar para as feiras de bairros que só crescem e para as feiras das praças públicas nos finais de semana que Campo Grande abraça com tanto carinho.
Campo Grande pode ser uma cidade de espaços abertos tomados pelo pertencimento de seus habitantes, por relações interioranas que se estabelecem em uma capital. Campo Grande não precisa de uma feirona que virou um shoppingzão.
AUTORA: Lenita M. Rodrigues Calado – Doutora em História.