Prédios culturais históricos foram tomados pelas águas da enchente que atinge Porto Alegre e o Rio Grande do Sul nesta sexta e sábado, com as chuvas que causaram o transbordamentos de rios no interior e do lago Guaíba na capital. O Nonada apurou que servidores passaram a manhã de sexta removendo a reserva técnica dos museus para andares mais altos antes que a área inundasse. Ainda assim, os danos à estrutura dos prédios ainda não podem ser mensurados, já que o nível da água segue subindo.
Em Porto Alegre, a enchente é causada pelo aumento do nível do Guaíba, que ultrapassou os 5,4 metros após as fortes chuvas que atingiram o estado na última semana. Mesmo com o muro de contenção que protege a cidade, a água acabou vazando pelas comportas da construção e pelos bueiros. A expectativa é que o nível do lago permaneça acima dos 4 metros por pelo menos 3 dias. Ao todo, 57 pessoas morreram, pelo menos 67 pessoas estão desaparecidas e 32 mil estão desalojadas, segundo informação divulgada na tarde de sábado (esta reportagem será atualizada caso haja novos dados).
No centro histórico de Porto Alegre, a água chegou à praça da Alfândega, tombada pelo Iphan, onde estão o Museu de Arte do Rio Grande do Sul (Margs), o Memorial do Rio Grande do Sul, ambos equipamentos estaduais, e o Farol Santander, da iniciativa privada. Os prédios foram construídos no início do século 20.
Perto dali, na rua dos Andradas, também inundada, fica a Casa de Cultura Mario Quintana (antigo Hotel Majestic, construído em 1933), principal centro cultural de Porto Alegre. Os livreiros da Livraria Taverna, que fica no térreo da construção, passaram a tarde de sexta tentando mover os livros para locais mais seguros. A informação é que o nível da água ainda é raso na região do prédio.
Na Andradas, foi atingido ainda o Museu da Comunicação Hipólito José da Costa, cujo acervo também foi movido para andares mais altos do prédio. No entanto, não há estimativa sobre o quanto o nível da água ainda pode subir. O Museu Militar do Comando Militar do Sul também está localizado na área e corre riscos.
A Prefeitura de Porto Alegre, também cercada pelas águas, sedia a Pinacoteca Aldo Locatelli, que fica no subsolo do prédio e possui um acervo de mais de mil obras de arte. Não há informações sobre a condição do acervo da Pinacoteca. Ainda na área central, a enchente também atingiu o Mercado Público de Porto Alegre, que conta com uma obra em homenagem a Bará (Exu), muito significativa para os povos de terreiro da cidade.
Em Arroio dos Ratos, interior do estado, o Museu Estadual do Carvão ficou quase completamente submerso, e a informação que o Nonada apurou é de que o acervo todo foi comprometido, já que não pôde ser movido antes da enchente. Na cidade de Santa Tereza, também afetada neste episódio, casas históricas do século 19 foram destruídas em setembro de 2023, quando outro episódio extremo de chuvas causou o transbordamento do rio Taquari.
Em nota, a Secretaria de cultura do Rio Grande do Sul (Sedac-RS) informou que “uma força-tarefa realizada até o início da tarde desta sexta-feira (03) tornou possível a remoção das obras para andares superiores em tempo, antes da chegada da água ao prédio do MARGS e à Praça da Alfândega”. A Sedac não soube informar o estado dos equipamentos estaduais atingidos.
Já o Iphan afirmou que “a equipe técnica está a postos para prestar todo apoio necessário às comunidades na reconstrução daquilo que foi afetado e aguarda melhoria das condições para se deslocar para a cidade. Ainda como forma de ajudar na recuperação dos danos, o Instituto priorizará os projetos do Novo PAC previstos para a região.”
Bens culturais atingidos pelas enchentes de 2024 no RS:
- Mercado Público de Porto Alegre
- Memorial do Rio Grande do Sul
- Museu de Arte do Rio Grande do Sul
- Farol Santander
- Casa de Cultura Mario Quintana
- Museu da Comunicação Hipólito José da Costa
- Pinacoteca Aldo Locatelli
- Museu Estadual do Carvão
- Casas históricas de Santa Tereza
Faltam políticas culturais de prevenção a danos causados por eventos extremos
Nos últimos anos, uma série de eventos danificou prédios e elementos históricos em diversas regiões do país. Em 2011, fortes chuvas destruíram edificações históricas na cidade de São Luiz do Paraitinga, em São Paulo, incluindo a Igreja Matriz, que havia sido construída no século XIX. No mesmo ano, pelo menos 30 casas tombadas na cidade de Goiás Velho foram atingidas e dois casarões bicentenários foram abaixo com o transbordamento do Rio Vermelho.
Há cinco anos, um incêndio chegou perto do sítio arqueológico Serra da Lua, no Pará, onde estão dezenas de pinturas rupestres. Para a doutora em arqueologia Luana Campos, os eventos não podem ser analisados isoladamente. “São indicativos de que algo está mudando e que essas mudanças podem vir a ser permanentes. É uma realidade que não tem como fugir ou negar”.
Mudança climática é uma expressão chave para entender os desastres contemporâneos causados ao patrimônio, segundo especialistas da área com quem o Nonada conversou em reportagem publicada em 2022. Carla Teixeira, doutora em Arquitetura e Urbanismo, explica que os impactos variam conforme a região do planeta e aponta algumas consequências que podem ocorrer devido ao aquecimento global:
“Danos a sítios e edifícios históricos localizados em zonas litorâneas resultantes do aumento do nível do mar, aumento da incidência e intensidade de tempestades, contribuindo para a ocorrência de enchentes e deslizamentos de terra e aumento da temperatura, que pode contribuir para a aceleração dos processos de deterioração de materiais sensíveis.”
Segundo a especialista, políticas voltadas à preservação do patrimônio com foco em mudanças climáticas ainda são inexistentes no país. “Devido às dimensões territoriais e características específicas das regiões, os efeitos das mudanças se darão de forma diferente, sendo fundamental conhecer os impactos locais para desenvolvimento de estratégias de prevenção, bem como analisar as vulnerabilidades específicas dos bens culturais em cada uma dessas regiões”, destaca.
O Nonada entrou em contato com o Iphan para saber que medidas estão sendo planejadas para a criação de políticas, mas não obteve respostas até a publicação da reportagem. O site oficial informa que o órgão, em parceria com o Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos), disponibiliza um formulário de determinação de riscos, como parte do programa Diálogos sobre Patrimônio Cultural e Ações Climáticas. Os objetivos da iniciativa são “analisar os principais riscos que afetam e poderão afetar distintos tipos de bens do patrimônio cultural e produzir dados e estudos para fortalecer políticas públicas e ações de enfrentamento.”
FONTE: *NONADA