Em setembro de 1997, no elegante ambiente de um bar em São Conrado, no Rio de Janeiro (RJ), Nélson Gonçalves concedeu aquela que seria sua última coletiva de imprensa. Com saúde fragilizada devido a uma isquemia no miocárdio, o cantor lançou seu derradeiro álbum "Nélson Gonçalves - Ainda é Cedo", composto por músicas de renomados roqueiros dos anos 80, como Cazuza, Renato Russo, Herbert Vianna e Lulu Santos.
A entrevista, conduzida por Rodrigo Teixeira e Rodrigo Faour, foi repleta de momentos marcantes e declarações polêmicas. Conhecido por seu estilo direto e sem papas na língua, Nélson Gonçalves compartilhou suas impressões sobre a música contemporânea, suas experiências ao longo de seis décadas de carreira e suas opiniões irreverentes sobre figuras icônicas da música brasileira.
Em meio as gargalhadas, Nélson não poupou palavras ao falar de João Gilberto, a quem se referia como “Diminuto” e “Fim de Noite”, e não hesitou em comentar sobre sua própria vida pessoal, com a mesma franqueza que caracterizava suas canções. A entrevista foi uma celebração da carreira de um dos maiores nomes da música brasileira, marcada por sinceridade, nostalgia e uma boa dose de humor.
Nélson Gonçalves, nascido Antônio Gonçalves Sobral, tornou-se um dos mais emblemáticos cantores da música popular brasileira, famoso por sua voz grave e potente. Ele nasceu em 21 de junho de 1919, em Santana do Livramento, Rio Grande do Sul, e faleceu em 18 de abril de 1998, no Rio de Janeiro. Com uma carreira que durou mais de seis décadas, Nélson gravou inúmeros sucessos, incluindo clássicos como "A Volta do Boêmio" e "Naquela Mesa". Sua trajetória foi marcada pela habilidade de interpretar canções de amor e sofrimento, além de uma vida pessoal tumultuada, que incluiu lutas contra a gagueira na infância e problemas com a justiça.
Ao TeatrineTV, Rodrigo Teixeira disse que pretende ainda desenvolver algum projeto acerca da entrevista, que apesar de não ter imagens, ainda tem uma fita: "[Fotos] Não tenho, mano. Nesta época, as fotos não vinham para o repórter, as fotos eram reveladas e impressas. Na verdade, uma funcionária da minha mãe jogou fora a maioria dos jornais que eu tinha dessa época, e aí foi-se o arquivo. A entrevista foi em 1997. Ele morreu um ano depois. Tenho a fita K7 da entrevista... aliás, foi o que sobrou. Tenho umas 60 fitas com os áudios das entrevistas que preciso transformar em um livro, projeto...", adiantou o jornalista.
Na próxima sexta-feira, 21 de junho de 2024, se estivesse vivo, Nélson Gonçalves completaria 105 anos. Em celebração a esta data e com a gentileza de Rodrigo Teixeira, o TeatrineTV compartilha abaixo a íntegra da entrevista histórica com Nélson, repleta de memórias e confidências de um dos últimos grandes cantores da era de ouro da música brasileira.
O ÚLTIMO DOS MOICANOS
Nélson Gonçalves bem que poderia ter nascido no Velho Oeste. Ele fazia o estilo ‘durão’. Leve no duplo sentido mesmo! Baixo-cantante, como gostava de ressaltar, não é que o gaúcho criado em São Paulo fez por merecer o apelido de Metralha. De gago ele não tinha nada. Na verdade, Nélson era taquilálico. Falava rápido demais. Legítima metralhadora-giratória...
Já havia escutado de coleguinhas que o cantor de "A Volta do Boêmio" tinha o hábito de se vangloriar do tamanho de sua ‘pistola’ e, não raro, mostrava a… prótese peniana (ele se divertia ao abraçar os amigos...). Embecado, de terno azul-marinho e cabelo gomalinado, Nélson não só fez a lenda se tornar realidade como deu a medida exata do que ele definiu como 'Cartucheira 45'.
Era setembro de 1997. Nélson concedia – em um bar chique de São Conrado, no Rio – o que seria a sua última coletiva. Ele faleceu meses depois, em abril de 1998. Os jornalistas entravam de dois em dois para conversar com Nélson. Eu fiz a entrevista com o xará Rodrigo Faour (que depois lançou a biografia de Cauby Peixoto...).
Magro e com a voz enfraquecida devido a uma isquemia no miocárdio, o cantor lançava o derradeiro "Nélson Gonçalves – Ainda é Cedo". O CD é composto por músicas de roqueiros da década de 80. Cazuza, Renato Russo, Herbert Vianna, Lulu Santos…
A entrevista foi divertida. Durou 30 minutos e foi regada a água e café. O neto de Nélson permaneceu ao seu lado durante quase todo o tempo. O final do bate-papo foi surpreendente, com ele declamando duas poesias que tenho até hoje no acervo de fitas cassetes com dezenas de entrevistas gravadas e que serão transcritas nesta série No Fundo do Baú. Foi engraçado quando Nélson ouviu o nome de João Gilberto. Ficou agitado, parecia realmente nervoso e chamou o ídolo do Caetano de “Diminuto” e “Fim de Noite”.
Inesquecível!
Rodrigo Teixeira: Qual foi o critério de seleção das músicas do CD?
Nélson Gonçalves: Já conhecia as músicas. E achei bom gravar estas músicas com a minha divisão musical. Valorizo muito as tônicas. Não dou as notas dissonantes. Vou pelo lado natural. Achei que podia fazer bonito com estas canções. Porque muitas músicas que eles fazem, estes rocks e tal, a gente não entende a letra. As palavras escapam. Você não entende. Então quis fazer uma alteração leviana, minha, com os instrumentos em segundo plano e o coro só pontuando as notas. Gravei só com um terço da minha voz. Tudo bem, ficou suave. Lindo de morrer.
Rodrigo Teixeira: Você grava de prima?
Nélson Gonçalves: Gravei todas as músicas de prima. Não dá para repetir não. Ouviu uma, grava na outra.
Rodrigo Teixeira: Durante as décadas de 70 e 80 você regravou muitos sucessos seus. Por que só agora resolveu fazer um disco totalmente diferente do que tinha feito?
Nélson Gonçalves: Porque tem o seguinte. Havia grandes cantores no Brasil. Chico Alves, Orlando Silva, Carlos Galhardo, Vicente Celestino, Silvio Caldas... Mas eles morreram. E parece que só restou eu. Aquela época de ouro dos cantores. Então, com esta invasão, vamos dizer assim, no bom sentido, do rock, do pop, desta coisa toda, do reggae, que todo mundo canta, as moças cantam, eu, pra não ficar fora desta coisa, embora o Brasil hoje não seja um país só de jovem, tá quase dividida a população, achei bom misturar isto daí e juntar as duas gerações, terceira idade e jovem. Então escolhi as músicas com o Robertinho do Recife. As tônicas estão todas certinhas. Não diz saudadi, diz saudade. Não diz rosá, diz rosa. Não diz casá, diz casa. Foi a primeira vez que trabalhei com ele. É um bom produtor. Novo. Ele me ouviu muito. Nos reunimos antes. Disse para ele que queria um som como se fosse dentro de uma igreja vazia. Fica um som no ar. Não é um som sentado.
Rodrigo Teixeira: Qual a sua preferida do CD?
Nélson Gonçalves: Não posso falar, senão vou machucar os outros (hehe).
Rodrigo Teixeira: Ano passado fizeram uma peça em sua homenagem. O que achou daquilo?
Nélson Gonçalves: Achei boa. Faltam alguns detalhes importantes, mas…
Rodrigo Teixeira: Por exemplo?
Nélson Gonçalves: Não vou dizer para não machucar o rapaz (hehehehehehe).
Rodrigo Teixeira: Tem alguma cena que você viu, que te tocou?
Nélson Gonçalves: Não, sabe por quê? Na peça que ele passa para mim, solo e tal, e eu sou um pouco irreverente. Não mal criado, irreverente. Digo não, sim. Deram uma lapidada na pedra bruta. Mas ficou bom.
Rodrigo Teixeira: Em 60 anos de carreira, quais os momentos que mais te marcaram?
Nélson Gonçalves: Comecei a cantar em 1937. Minha emoção maior foi o meu primeiro disco. Quando ouvi meu primeiro disco. Fiquei pensando: “Eu canto bem”. Havia aquelas vitrolas que você colocava as moedas para tocar as músicas, voltava para casa sem um níquel porque colocava na vitrola para tocar. Quando acabei de ouvir o disco, foi uma emoção. Muito bonito. Foi aí que lancei um ritmo novo: o samba sincopado (demonstra tocando). Nasceu comigo. A divisão é difícil de fazer. E depois foi em 73 e 74, quando recebi o prêmio Nipper (aquele do cachorrinho beagle do gramofone), da RCA, que só tem dois no mundo. Um o Elvis Presley e o outro eu. Veio ao Rio o presidente da RCA americana, especialmente para entregar o prêmio. Pelo tanto de anos e de vendagem de disco.
Rodrigo Teixeira: Qual a sua marca?
Nélson Gonçalves: Já vendi 78 milhões de discos. Gravei 127 LPs, 26 CDs, com este 27, 200 compactos duplos, 200 compactos simples, 200 fitas cassete, e 103 discos 78 rotações, como era antigamente.
Rodrigo Teixeira: Depois de tudo isso tem algum projeto que você ainda queira fazer?
Nélson Gonçalves: Vou gravar um CD com rock, pop, reggae, samba. O próximo. Vamos misturar a música tradicional minha com a dos jovens novamente.
Rodrigo Teixeira: Gravar atualmente é mole perto do início de sua carreira…
Nélson Gonçalves: Antes a gente gravava com dois canais e o veículo era o rádio. Em algumas rádios tinha um cara que via o meu disco e riscava. Boicote. Um compositor chamado Nilton de Oliveira.
Rodrigo Teixeira: Como você analisa estes compositores atuais? Não existe mais da estirpe de um Ataulfo Alves, Lupicínio Rodrigues... Atualmente faltam compositores nesta linha do bolero…
Nélson Gonçalves: Hoje ficou muito mais fácil. Antigamente você queria pegar uma mulher para transar você tinha que namorar, levar para dançar. Hoje em dia não. Você pode ficar com três, quatro na mesma noite. Então está fácil demais. E é por isso que está assim. Qualquer um compõe.
Rodrigo Teixeira: Você não gosta da música atual?
Nélson Gonçalves: Ta aí a dança do tchan. A dança da bundinha. Daqui a pouco vão fazer a dança da bucetinha, vocês vão ver…
Rodrigo Teixeira: De todos os compositores, qual caia como uma luva para a sua voz?
Nélson Gonçalves: Lupicínio Rodrigues.
Rodrigo Teixeira: Você apontaria um herdeiro musical desta sua escola, que realmente cante de verdade?
Nélson Gonçalves: Sou o último dos Moicanos. Gostaria que tivesse, mas é muito difícil, porque sou baixo-cantante, pego três oitavas. É muito raro…
Rodrigo Teixeira: Você chegou a estudar música. Você lê partitura?
Nélson Gonçalves: Sim, leio. Estudei voz com o Zebolati e música com Moacir Santos.
Rodrigo Teixeira: Você gravou com muita gente que seriam seus filhos musicais neste CD. Você se surpreendeu com eles quando foi gravar?
Nélson Gonçalves: Tive surpresas sim, mas não foram agradáveis. Eles pensavam uma coisa: vamos cantar com o velho, chegaram lá e a coisa foi diferente. Teve um cantor que disse assim: 'Vê o tom do velho aí que eu canto'. Eu falei pro maestro vê o tom dele que canto igual. Começamos a cantar e ele não conseguiu acabar a música… Parece que estava com diarreia. Um famoso cantor de boné… O meu horário de trabalho é nove horas da manhã. Acordo, gravo e, no outro dia, está pronto o LP. Tem gente que grava uma música por um dia, repetindo, repetindo… Gravei este disco doente, de cama. Tive uma isquemia no miocárdio. Mas foi fácil gravar.
Rodrigo Teixeira: Qual a que você mais gostou?
Nélson Gonçalves: Para mim todas foram boas. Os cantores que foram ouvir lá choraram. Tá passando mal? Não, Nélson, é emoção. É a música que eu fiz, que coisa. Lágrimas. Que é isso? (kkkkk)
Rodrigo Teixeira: Logo que surgiu a bossa nova você fez aquele disco "Nós e a Seresta". Tinha uma música chamada "Seresta Moderna" que você brincava com o pessoal da bossa nova. Dez anos depois, você gravou Tom Jobim. Com o tempo o senhor deu mais valor ao pessoal da bossa nova?
Nélson Gonçalves: Daquela época, me aponta um que ficou…
Rodrigo Teixeira: João Gilberto.
Nélson Gonçalves: (agitado) Ele canta alguma coisa? Não canta nada. Tom Jobim foi um compositor excelente. Vinícius de Moraes excelente. Mas cantando, tchuntchuntchun…
Rodrigo Teixeira: Na bossa nova inaugurou-se um novo jeito de cantar, baixinho...
Nélson Gonçalves: Sabe como era o apelido do João Gilberto? Fim de Noite. Era ele com o violão!
Rodrigo Teixeira: Depois da bossa nova qualquer um começou a cantar?
Nélson Gonçalves: O culpado disso é o João Gilberto. O Diminuto. Cantar sem voz. (Imita João Gilberto… kkkkk) 'Saudade que você não tem… Passa comigo que você vai ver… hum, hum, hum'… Amplia, bota som… Puta que pariu! Imagina ele na cama com uma mulher? (Imita de novo!!!) ‘Meu amor, ai que gostoso’… Ah, vai para o raio que te parta! Eu não sou assim não. Eu sou agressivo, sem bater. Amorosamente. Vem cá, me dá aqui!!!?
Rodrigo Teixeira: Quais os lugares que você frequentava no Rio de Janeiro nos anos 50?
Nélson Gonçalves: Os piores. A Zona, na Sapucaí, na Lapa… Não se via assalto. O submundo era bem menos barra pesada.
Rodrigo Teixeira: Você saiu do Sul com quanto tempo?
Nélson Gonçalves: Com dois anos. Fui para São Paulo, onde morei no Brás. Mas o Adoniran começou comigo a vender anúncio para a Rádio Record. Eu ralei um bocado.
Rodrigo Teixeira: Qual o conselho que você daria para um jovem que está começando uma carreira?
Nélson Gonçalves: Tem que receber o não como sim. E vá em frente. Tive no Rio e fiz teste, sendo cantor profissional em São Paulo. Cantei na Marink Veiga, na Rádio Nacional, no Celso Guimarães, Ipanema… Só ouvi ‘não gostei’. O Ary Barroso me mandou jogar boxe que ‘eu não cantava nada’. Se for um qualquer, desiste. Mas fui à luta! E depois que fiz sucesso, ele veio falar que ‘estava brincando’. Aqui para você!!!
Rodrigo Teixeira: As letras de sambas-canções tinham muito aquela coisa de você mudou de dono... Como avalia as letras hoje?
Nélson Gonçalves: Eles falam da mulher indiretamente. Dizia ainda é cedo. Uma menina me falou. Não falam o nome da mulher, mas falam da mulher. Indiretamente e branda. A minha maneira é mais: ‘Vamos lá’… Eles falam, ‘você é linda’ e eu, ‘você é gostosa!’ Acho que as coisas mudaram para melhor, embora haja um avanço meio inoportuno para a atual infância. A criança está ficando adulta muito cedo. Dança da bundinha para lá e para cá… Cresce como? P-U-T-A. Isso que é o mau. Mas vai ter uma virada. Uma suavizada.
Rodrigo Teixeira: Você ainda compõe?
Nélson Gonçalves: Sim. Tem até um verso, que chamo de “Esquerdo do Amor”. Tem o lado direito do amor, que é o cara casado, direito, correto, trabalha, chega em casa tem a mulher, não tem amante na rua… E tem o lado esquerdo, que é aquele cara que prevarica na rua, dorme na rua… É o Esquerdo do Amor: “MENTI, E COMO CONSEQUÊNCIA PERDI, TEU AMOR E TUA INOCÊNCIA. SOU AGORA UMA SAUDADE ESQUECIDA, UMA LEMBRANÇA PERDIDA, EU SOU O VAZIO QUE FICA DEPOIS DO AMOR, EU SOU O TÉDIO, O ÓDIO E O DESPEITO, SOU TUDO O QUE NÃO É DIREITO, EU SOU O ESQUERDO DO AMOR”.
Rodrigo Teixeira: Alguma vez você foi o Esquerdo do Amor?
Nélson Gonçalves: Fui. Olha esta aqui. “SERÁ QUE VOCÊ MENTIA, NO TEMPO QUE ME DIZIA, EU NÃO VIVO SEM VOCÊ, OU É AGORA QUE MENTE, QUANDO PASSA INDIFERENTE, FINGINDO QUE NÃO ME VÊ”. Olha, eu tenho segundo grau!
Rodrigo Teixeira: Quando é que você começou a sossegar este lado esquerdo do amor?
Nélson Gonçalves: Sossegar? Fui casado quatro vezes. Tenho 78 anos de idade, mas eu tenho... Eu tenho 22 cm de pau… Tenho um tesão filha da puta. Canto com um tesão do caralho. (Olhando para baixo, em direção da prótese) Não posso ir a piscina. Por causa do volume. Parece uma cartucheira 45.
Últimas faixas de Nélson Gonçalves
- Como Uma Onda (Nelson Motta/Lulu Santos)
- Faz Parte do Meu Show (Renato Ladeira/Cazuza)
- De Mais Ninguém (Marisa Monte/Arnaldo Antunes)
- Meu Erro (Herbert Vianna)
- Ainda é Cedo (Ouro Preto/Renato Russo/Dado Villa-Lobos/Marcelo Bonfá)
- Você é Linda (Caetano Veloso)
- Bem Que Se Quis (Pino Danielle/versão Nelson Motta)
- Caso Sério (Rita Lee/Roberto Carvalho)
- Nada por Mim (Herbert Vianna/Paula Toller)
- Simples Carinho (João Donato/Abel Silva)
- Estácio, Holly Estácio (Luis Melodia)
- Me Chama (Lobão)
Entrevista concedida ao extinto caderno cultural Cult Press, da agência carioca Carta Z Notícias. O TeatrineTV extraiu a entrevista do site Overmundo.