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​‘Crema’ nasce​​ do medo de matar e debate a pandemia da ‘não escuta’

6 NOV 2022 • POR • 18h02
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Dramaturgo, ator, músico, professor e pesquisador, Leonardo de Castro, contou que o medo de infectar e matar sua namorada em meio a pandemia de Covid-19 em 2020, fez com que nascesse a história de seu espetáculo ‘Crema’, apresentado nos dias 3 e 4 de outubro de 2022 no Sesc Cultura em Campo Grande (MS).

“O medo de morrer e o medo de matar. Na época que escrevi esse texto, eu estava em Ladário, longe de meus familiares. Estava na casa da minha namorada e morria de medo de pegar a doença [Covid-19], infectá-la e a matar. Passava muita coisa na minha cabeça, em meio a pandemia. Quando escrevo a Élida e Isis, e coloco elas em cena, era num lugar de medo, uma sensação de pânico, mas ao mesmo tempo era uma busca por uma resposta de algum conforto”, introduziu.

Esse é o dramaturgo de Crema, Leonardo de Castro. Foto: @teroqueiroz | @teatrinetv

Estrelado por Nathália Maluf e Nilcieni Maciel, o espetáculo versa sobre mulheres que se confrontam em uma relação entre mãe e filha em busca de uma liberdade a qual não enxergam. Natália é “Isis” e Nilcieni “Élida”. A bebê, pivô do conflito entre elas, chama-se "Aisha". Ao longo do espetáculo, as personagens travam diálogos solitários emulando monólogos, que, entretanto, por vezes são interrompidos. "Isis (a filha)" acaricia um feto sem rosto que habita um cesto no centro da cena. "Élida (a mãe)", diz que o feto já morreu e o ideal seria cremá-lo, porém, as duas discordam dessa medida.

"Isis" brinca com o feto no cesto ao centro da cena. Élida descasca uma maçã. Foto: @teroqueiroz | @teatrinetv

Leonardo também assina a sonoplastia e música original. Falamos com ele logo após o espetáculo na noite do dia 4 – 2º dia de apresentação. O jovem dramaturgo contou que a história de Élida e Isis não está presa ao período pandêmico, pois debate também outra pandemia social. “Acaba saindo da pandemia... vejo que as doenças sociais que nós temos, as diversas outras pandemias que nos formam, estão sendo colocadas na cena, muito porque é dirigido pela Lígia [Prieto] e interpretado pela Nathália e pela Nilce. Elas trouxeram questões do feminino, o texto cresceu muito mais com a chegada dessas mulheres, é superior ao que eu havia escrito. Muito pelas experiências delas, trazidas para a cena”, considerou.

Desfecho trágico da personagem 'Élida' foi inspirado em conto e off real da avó de Leonardo. Foto: @teroqueiroz | @teatrinetv

No espetáculo, um áudio da avó de Castro é usado para dar desfecho à saga das personagens. “Minha avó, perto de falecer, debilitada... há mais ou menos um ano antes dela falecer, ela me contou essa história que nós ouvimos no espetáculo. Dona Joana, fiquei uns três meses lá com ela, quando ela me contou essa história eu pude gravar. Com isso, trazemos muito a memória de minha avó... é um espetáculo formado por vozes, olhares e direções femininas, eu apenas o escrevi”, avaliou.

As mulheres também estão na iluminação e produção: Kelly Figueiredo. E figurinos: Bê Perez.

Castro completa dizendo que o espetáculo alerta para a necessidade de se proteger de outras doenças sociais. “Se proteger, se cuidar, de todas essas doenças sociais que a gente vive todos os dias. Da loucura social, da euforia, principalmente agora que está tudo muito incerto, porque certamente vivemos outro tipo de pandemia”.

A atriz, escritora, poetisa e diretora no Grupo Casa, Lígia Prieto, responsável pela direção de ‘Crema’, esclareceu que seu processo de direção está muito ligado à escuta. “Antes, na pandemia, tinha dificuldade maior porque elas estavam o tempo todo com o celular na mão em cena. O aparelho fazia parte do corpo delas, o online fez a gente encontrar alternativas para isso. Eu acho que o online era mais claustrofóbico, um rapaz, o Henrique me disse isso hoje. Ele assistiu os dois. A grande diferença é que aqui temos essa resposta do público”, considerou.

Lígia Prieto é uma das mais destacadas diretoras do teatro sul-mato-grossense. Ela falou à reportagem do TeatrineTV ao final da apresentação de 'Crema', em 4 de outubro de 2022. Foto: @teroqueiroz | @teatrinetv

Para a diretora, o espetáculo debate loucuras singulares sem que haja a escuta de ambas as personagens. “Acabaram as filosofias... são duas loucuras sozinhas que não ouvem a loucura do outro. A gente não sabe se ela sai pela porta e morre. A gente não sabe se ela escolhe a vida ou não. Ela sai, se ela vai viver ou se o mundo acabou lá fora, ou não, a gente não sabe. Hoje a gente acredita que a gente pode sair pela porta, antes a gente tinha medo”, comentou a diretora.

Em cena, Nathália Maluf e Nilcieni Maciel realizam performances circenses. Foto: @teroqueiroz | @teatrinetv

Prieto disse que ‘Crema’ expõe uma cicatriz social emergente. “São dois mundos muito fechados em si, sem alcançar o outro, um dos maiores problemas que temos hoje na sociedade, não alcançamos o outro. Essa loucura só se atenua sem a escuta, resultando em algo trágico. Não conseguir se compreender, permitir que todos existam. Acho que se a gente se aprisionar a essa loucura, aniquilamos a liberdade. Detonamos uma pandemia da não escuta”, sustentou.

Conforme a diretora, a discussão sobre ‘loucura social’ é atemporal. “É atemporal, achávamos que nunca mais íamos vivenciar pensamentos tão difíceis, mas estamos vendo aí a loucura em massa em muitos lugares... estamos sem escuta para as coisas diferentes”, metaforizou.

Veja (abaixo) a cobertura fotojornalística do espetáculo 'Crema':

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FECHAMENTO DE CICLO

A apresentação de ‘Crema’ no Sesc Cultura, integra uma curta temporada promovida pelo Grupo Casa. A diretora explicou que, no mesmo local, ainda haverá apresentações de mais dos espetáculos. “Ficamos com vontade de finalizar esses três espetáculos que criamos durante a pandemia. São projetos que desenvolvemos sem apoio: o ‘Crema’, ‘A Borboleta Mais Velha do Mundo’ e ‘Dom Casmurro'. São espetáculos que criamos para não enlouquecer! Os três criamos sem apoio financeiro, com cenário barato, com a nossa lógica de fazer a cena. Eles nasceram online e vamos apresentar todos fisicamente para fechar um ciclo”, esclareceu.

Também no Sesc Cultura, no próximo dia 26 de novembro, Lígia apresentará o espetáculo 'A Borboleta Mais Velha do Mundo'. “Também faremos apresentações nos shoppings da cidade”, finalizou, Lígia.

Por fim, com direção de Lígia, será apresentado ‘Dom Casmurro’, com atores que vivem em Assis (SP), que estarão em cartaz nos dias 7, 8 e 9 de dezembro, também no Sesc Cultura. No dia 10, antes do espetáculo, Lígia também apresentará um festival chamado “Humanidades”, com cenas ‘resultado’ de suas oficinas de teatro. “Vamos trazer para cá esse encerramento. Cenas criadas por eles [alunos] e cenas estudadas em nossos cursos”, adiantou.

DESTAQUES NACIONAL

Lígia e Leonardo integram a lista dos 100 autores e autoras, espalhados pelas cinco regiões brasileiras, destaques por escreverem peças de teatro nos últimos 10 anos no país. Eles estão no seleto grupo do Portal de Dramaturgia (www.portaldedramaturgia.com) — espaço virtual construído a partir de um mapeamento desses autores — colocado no ar em maio de 2022.

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