Morto por onça-pintada, Jorginho vira lenda e poema no Pantanal
Biólogo e escritor Carlos Gentil Vasconcelos, retrata o encontro fatal do ribeirinho com o felino
23 ABR 2025 • POR TERO QUEIROZ • 09h45
A morte de Jorge Ávila, conhecido como "Jorginho", aos 60 anos, em 21 de abril de 2025, às margens do rio Miranda, em Aquidauana (MS), abalou a comunidade pantaneira e gerou repercussão nacional.
Segundo informações da Polícia Militar Ambiental (PMA), Jorginho foi atacado por uma onça-pintada enquanto estava em sua residência isolada. Equipes de resgate que foram ao local também sofreram ataques do animal durante a tentativa de recuperar o corpo da vítima.
Embora trágico, o incidente ressaltou a complexa relação entre seres humanos e a fauna do Pantanal. Especialistas apontam que tais confrontos são raros, mas podem ocorrer quando há interação direta entre humanos e animais silvestres em áreas de sobreposição de habitat.
Em meio à dor da perda, o biólogo e escritor Carlos Gentil Vasconcelos, autor do livro Zé Caré em busca do rabo perdido, criou o poema "O Encontro de Jorge e a Onça" — que também expressa forte poesia.
A obra reflete sobre a fatalidade, misturando elementos da realidade com a tradição oral pantaneira, e tem sido utilizada por moradores e educadores locais para promover discussões sobre convivência e respeito à natureza.
Antes de seu corpo ser achado, Jorginho já era considerado desaparecido. Marcas de pegadas próximas à residência simples onde Jorge morava sozinho, às margens de um afluente do rio Paraguai, já indicavam um possível encontro fatal com o animal.
No poema de Gentil, "o boné do morador foi encontrado pendurado no mesmo lugar de sempre. O tereré, bebida típica da região, permanecia gelado. Nada havia sido levado. Apenas Jorge não estava mais ali".
Jorge é retratado não como vítima, mas como guardião. O biólogo aponta Jorge como um homem que convive com o bioma em equilíbrio, respeitando seus ciclos e limites. A onça, por sua vez, surge como símbolo da floresta, cobradora de antigas promessas e presença eterna no imaginário local.
No Dia Mundial do Livro, celebrado nesta 4ª.feira (23.abr.25), "Jorginho" virou lenda, lembrada no entardecer pantaneiro — quando o céu se tinge de fogo e a mata guarda seus segredos.
Leia a seguir, na íntegra, o poema “O Encontro de Jorge e a Onça”, de Carlos Gentil Vasconcelos:
O Encontro de Jorge e a Onça
No coração quente do Pantanal,
o céu se tingia de fogo ao entardecer,
e o Sr. Jorge, de boné desbotado e alma tranquila,
tomava seu tereré à sombra do ipê-amarelo,
sentado na varanda onde o rio passava calmo.Era homem de fala mansa, olhar atento.
Sabia decifrar pegadas no barro
e escutava o canto dos bichos como quem lê poesia.Naquela tarde, ela apareceu.
A onça-pintada, a senhora da mata.
Olhos de âmbar, corpo de ouro e sombra.
Parou diante dele como se viesse cobrar algo antigo.— Homem... este chão me pertence.
Antes da tua casa, teus bois, teus trilhos...
Eu era o pulso da vida aqui.
Caço pra manter o ciclo.
Sou equilíbrio, sou alerta.
Mas teu mundo aperta o meu.Jorge suspirou, puxou um gole longo de tereré,
e respondeu com respeito:
— Dona Onça, não sou invasor.
Tô aqui faz vinte anos,
não cerquei teu rio, nem furei tua caça.
Só cuido do que posso.
Divido, não domino.A onça o fitou fundo,
e pareceu aceitar.
Virou-se e sumiu no mato
como se nunca tivesse estado ali.A partir daquele dia,
contam que Jorge virou mais guardião que morador.
Protegia árvores, soltava animais presos,
alertava os vizinhos:
"A floresta tem dono, e não sou eu."Mas os anos passaram.
E numa manhã de cheia,
encontraram a porta de sua casa aberta,
o tereré ainda gelado na guampa,
o boné pendurado num prego.Nada fora levado.
Só Jorge havia sumido.As marcas no chão eram claras:
pegadas de onça, duas — uma maior, outra menor.
Como se duas rainhas tivessem se cruzado ali.Alguns dizem que foi a mesma onça,
vinda cobrar o que Jorge prometeu.
Outros falam de uma nova,
sem pacto, sem memória, sem piedade.Mas ninguém ousa falar de tragédia.
Porque no Pantanal,
quando um homem como Jorge parte assim,
em silêncio e com marcas de bicho,
vira parte da lenda.E à noite, quando a lua reflete no brejo,
dá pra ouvir o rugido ao longe.
E quem conhece a mata diz:
"É só a onça… ou talvez o velho Jorge, ainda vigiando."Carlos Gentil Vasconcelos
Biólogo e autor de “Zé Caré em busca do rabo perdido”