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Vídeo em que prefeita Adriane Lopes faz declarações de intolerância e racismo religioso é verídico

Conteúdos que circularam no Instagram e WhatsApp apresentam declarações de Adriane, nas quais ela associa religiões afro-brasileiras a termos pejorativos como 'ímpio'

17 OUT 2024 • POR Camila Zanin • 10h50
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Prefeita Adriane Lopes na igreja. - Reprodução

Circulou durante a semana passada nas redes sociais (Instagram) e aplicativos de mensagens (WhatsApp) um vídeo no qual a atual prefeita de Campo Grande e candidata à reeleição, Adriane Lopes (PP), desfere comentários ofensivos e preconceituosos ao se referir às religiões afro-brasileiras como práticas de "ímpios". Parte da população, junto a líderes culturais e religiosos, manifestaram indignação nas redes. 

Diante disso, o TTVChecaZap, agência de verificação do TeatrineTV, realizou a checagem através de ferramentas de verificação de vídeo para confirmar a veracidade da mídia e do discurso. O TTVChecaZap é apoiado pelo projeto "Diversidade nas Redações 3: Desinformação e Eleições", promovido pela Énois e patrocinado pelo Google News Initiative.

Entrevistada pelo Campo Grande News no dia 8 de outubro, a prefeita Adriane foi questionada sobre o peso da sua religião na sua administração, e a resposta foi "religião não influencia na minha administração, a minha religião é uma decisão pessoal minha, eu sirvo a Deus, eu creio em Deus, mas isso vem para minha gestão como a pessoa Adriane, na minha gestão eu respeitei todas as religiões". Na sequência, a jornalista e entrevistadora Ângela Kempfer questiona se a prefeita tem conhecimento do vídeo em questão que se espalhou pelo WhatsApp, e teve como resposta de Adriane o seguinte discurso: "Olha Ângela, eu não tenho conhecimento, eu não assisti esses vídeos, eu respeito cada segmento e nunca nunca tive preconceito com nenhuma religião, eu acho que as pessoas são livres para fazer as suas escolhas, como eu também sou livre para fazer a minha, e eu respeito todas as religiões". 

Contudo, tal discurso se esvai no curto vídeo de 40 segundos, gravado por uma pessoa que estava presente no local do acontecimento (que não é possível ser identificado), no qual Adriane desfere a seguinte fala em cima de um palco: 

"No conselho de pastores eu disse: todo mundo ora para Deus levantar alguém, e quando Deus levanta, vai servir o ímpio né, vai votar no ímpio que tá lá no centro de macumba pagando para ganhar a eleição. E isso me constrange, sabe por que? Só porque Deus não escolheu quem ele queria, Deus escolheu uma mulher que era improvável na cidade. Mas Deus levantou e falou "só vai, não para". 

A declaração foi aplaudida e ovacionada por grande parte do público. 

A apuração indica que o vídeo não foi alterado, nem manipulado, ou seja, trata-se de um vídeo verídico, portanto, a fala de intolerância religiosa é real.

POR QUE INTOLERÂNCIA RELIGIOSA E RACISMO RELIGIOSO? ENTENDA

De acordo com o dicionário Priberam da Língua Portuguesa, a palavra "ímpio" refere-se a uma pessoa ou grupo que não demonstra respeito por crenças religiosas, especialmente em relação a Deus, sendo muitas vezes usada para descrever alguém que é irreligioso ou que age de maneira blasfema, que faz pouco caso dos 'valores estabelecidos'. Também pode se referir a quem é perverso, impuro, cruel ou desumano. O sentido original da palavra tem raízes no latim "impius", que significa "sem piedade" ou "sem devoção".

Conforme definido pela lei, intolerância em geral é a atitude odiosa e agressiva a culturas e opiniões diferentes das suas próprias, sendo a intolerância religiosa materializada por condutas de deslegitimação de crenças e religiões que diferem das suas, de modo a estigmatizar, excluir, desqualificar, segregar e silenciar as crenças e rituais considerados inferiores, em uma tentativa de manutenção do exercício de poder do que é socialmente visto como hegemônico.

O discurso da prefeita Adriane cria uma distinção clara entre "nós" (os que servem a Deus) e "eles" (os ímpios), que estigmatiza e desqualifica as crenças e religiões  afro-brasileiras, incita a divisão e fomenta ódio e intolerância em vez de promover o diálogo e o respeito às diferenças entre os cidadãos. Ao afirmar que os "ímpios" procuram o "terreiro de macumba", qualifica os povos de terreiros como hereges, contrários à religião, cometendo assim crime de racismo religioso, conforme a lei.

Intolerância Religiosa: ao desferir a frase "vai votar no ímpio que tá lá no centro de macumba", Adriane associa "o ímpio", ou seja, aquilo que é perverso, impuro e cruel, aos "centros de macumba" - religiões de matriz africana. A fala ainda sugere que a pessoa escolhida por "Deus" não deveria servir a alguém considerado "ímpio", o que reflete uma visão polarizada e preconceituosa de quem é ou não digno de apoio político com base em crenças religiosas. Isso é problemático, pois a política em uma sociedade pluralista deve respeitar a diversidade de crenças e a laicidade do Estado.

Racismo Religioso: A referência ao "centro de macumba" pode ser considerada preconceituosa, uma vez que o termo "macumba" é frequentemente usado de forma pejorativa para se referir a práticas de religiões afro-brasileiras, como o Candomblé, Umbanda e Quimbanda. Essas religiões, assim como qualquer outra, merecem respeito e liberdade de culto. Classificar essas práticas de maneira negativa contribui para a perpetuação de estigmas, discriminações religiosas, racismo e incita violência contra esses grupos.

NOTAS DE REPÚDIO E DENÚNCIA AO MINISTÉRIO PÚBLICO 

O Fórum Estadual de Cultura de Mato Grosso do Sul e o Fórum de Cultura de Campo Grande emitiram uma nota pública no dia 10 de outubro no Instagram, repudiando tais declarações da prefeita Adriane. Na nota, os fóruns destacam que a fala da prefeita não apenas fere o princípio da laicidade do Estado brasileiro, mas também reforça estigmas racistas que há séculos marginalizam a população negra e suas tradições. 

Conforme a nota, as declarações de Adriane não são apenas um ataque à liberdade religiosa, mas também um reflexo de racismo estrutural. Associar práticas religiosas de origem africana a termos como "ímpios" perpetua a criminalização dessas expressões culturais e espirituais, algo que tem raízes históricas na resistência negra no Brasil.

Além disso, os fóruns ressaltam a gravidade do discurso da prefeita, em um contexto em que o Estado de Mato Grosso do Sul enfrenta altos índices de intolerância religiosa. A intersecção entre racismo e intolerância religiosa, segundo a nota, faz das religiões afro-brasileiras alvos constantes de violência e perseguição. O documento denuncia que falas como a de Adriane Lopes incitam essa violência, agravando a divisão social e promovendo o ódio.

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Os casos de intolerância religiosa em Mato Grosso do Sul aumentaram significativamente nos últimos anos. Em 2023, houve um crescimento de 76% em relação a 2022, com o número de denúncias subindo de 17 para 30 registros. As religiões afro-brasileiras, como Umbanda e Candomblé, são as principais vítimas, juntamente com as casas de reza dos povos indígenas, que também enfrentam ataques, como incêndios criminosos. As denúncias incluem crimes de injúria religiosa, racismo religioso e perturbação de cultos


Na tarde de quarta-feira (16), a Federação dos Cultos Afro-Brasileiros e Ameríndios do Estado de Mato Grosso do Sul, protocolou uma denúncia ao Ministério Público Estadual, de Crime Religioso e Intolerância Religiosa contra a prefeita Adriane Lopes, que em seu pronunciamento público, fez menção aos povos de Matriz Africana e Comunidades de terreiro denominando-os como pessoas "ímpias" e utilizando "centros de macumba" de forma pejorativa e preconceituosa. Ao afirmar que os ímpios procuram o "terreiro de macumba" qualifica os povos de terreiros como hereges, contrários à religião, cometendo assim crime de racismo religioso, conforme já citado.

CASO ANTERIOR - DIA DO PRETO VELHO

A prefeitura de Campo Grande estabeleceu o "Dia da Liberdade Religiosa", que passará a ser comemorado nos dias 25 de maio na capital. A Lei de nº 7.200 foi sancionada pela prefeita da capital, Adriane Lopes (PP). Como justificativa para a data temática, a lei apresenta a liberdade religiosa da consciência à população e o pensamento em conjunto.


Apesar de tal feito, Campo Grande mais recente aderiu também ao 13 de maio em seu calendário municipal como "Dia do Preto Velho", projeto que precisou ser promulgado pelo presidente da Câmara Municipal, Carlos Augusto Borges, já que, após passar na Casa de Leis, a prefeita Adriane Lopes ignorou a proposta que se tornou lei sem receber a sanção ou veto do Executivo.


A proposta teve 8 votos contrários, dos vereadores Betinho (Republicanos), Clodoilson Pires (Podemos), Coronel Alírio Vilassantti (União Brasil), Dr. Sandro Benites (PP), Tiago Vargas (PP), Zé da Farmácia (PSDB), Professor Riverton (PP) e Gilmar da Cruz (PSD). Apesar de 8 votos contrários, o Dia Municipal do Preto Velho foi aprovado pela Câmara de Campo Grande, acabou sendo aprovado com 12 votos favoráveis.

Apesar da evolução dos sistemas internacionais de proteção aos direitos humanos, a violação maciça e sistemática ao direito de liberdade religiosa no Brasil ainda é uma realidade constante, principalmente, aos adeptos da umbanda, quimbanda, candomblé e outras expressões de fé de origem  africana, o que resulta, inclusive, em contínua perseguição religiosa, que muitas vezes converte-se na prática de crime de ódio.

Ao longo da história do Brasil, as religiões de matrizes africanas foram desumanizadas e demonizadas, bem como seus praticantes foram, de modo perverso,  socialmente marginalizados, o que facilmente se verifica por intermédio do levantamento dos dados do serviço de proteção dos direitos humanos do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, Disque 100, que demonstra que, não obstante a Constituição Federal consagrar no artigo 5º, inciso VI, a liberdade religiosa como direito fundamental, desde o ano de 2019 houve um aumento de mais de 60% dos registros de denúncias de intolerância Religiosa, cometida, em sua maioria, contra religiões de matrizes africanas.


Por fim, vale assinalar que induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de religião configura o crime de racismo previsto na Lei dos Crimes Raciais (Lei nº 7.716/89)


O Brasil  é um país laico e plural, e isso exige que todos os cidadãos, independentemente de sua fé ou crença, sejam respeitados, todas as expressões culturais e religiosas devem coexistir em paz.