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CRIADOR DO TEN

Presidente inscreve Abdias do Nascimento no Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria

Intelectual, poeta, ator, escritor, dramaturgo e artista plástico teve trajetória importante na luta contra o racismo e a discriminação

9 JAN 2024 • POR TERO QUEIROZ • 12h53
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Abdias é condecorado na Bahia pelo presidente Lula, em 2006, com a Ordem do Rio Branco, a mais alta condecoração brasileira. Foto: Arquivo

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionou nesta 3ª feira (9.jan.24) a lei que inscreve Abdias do Nascimento no livro “Heróis e Heroínas da Pátria”, localizado no Panteão da Pátria e da Liberdade Tancredo Neves, em Brasília. O texto oficial foi publicado no Diário Oficial da União por meio da Lei nº. 14.800.

Abdias do Nascimento foi poeta, ator, escritor, dramaturgo, artista, professor universitário, político e ativista pelos direitos civis e humanos das comunidades negras. Nasceu em Franca, São Paulo, e absorveu conhecimentos das gerações afro-brasileiras mais antigas transmitidos pela tradição oral em rodas de conversa. Mais tarde, ele se juntou à Frente Negra Brasileira, que organizou protestos públicos e trabalhou para integrar os negros brasileiros.

Abdias esteve ativamente envolvido na vida política brasileira. Com a ajuda de Dom Paulo Evaristo Arns, foi responsável pela criação do Instituto de Estudos e Pesquisas Afro-Brasileiras da PUC de São Paulo e pela organização do Terceiro Congresso da Cultura Negra nas Américas. Em 1983, criou a revista Afrodiáspora, meio de divulgação de atividades, problemas e aspirações dos afrodescendentes nas Américas. Ele também criou o Movimento Negro Unificado.


Em 1982, Abdias foi eleito deputado federal pelo Rio de Janeiro sob a bandeira da luta contra o racismo. Foi a primeira vez na história do Brasil que um brasileiro negro assumiu esta posição com as bandeiras de luta do movimento negro. Aos poucos, mas com persistência, Abdias fez valer discursos e posicionamentos, como questionar a comemoração do 13 de maio e exigir a oficialização do dia 20 de novembro como o Dia da Consciência Negra. Foi o primeiro deputado federal a desenvolver projetos de políticas afirmativas. Na década de 1990, tornou-se senador. Como substituto do antropólogo Darcy Ribeiro no Senado, ocupou o cargo de 1991 a 1992 e de 1997 a 1999.

Além de poeta, dramaturgo e artista, Abdias Nascimento destacou-se como cientista social e autor de obras sobre temática afro-brasileira, considerado referência neste campo de estudo. Como artista visual, realizou diversas exposições em museus, universidades e centros culturais brasileiros.mo artista plástico, realizou diversas exposições em museus, universidades e centros culturais brasileiros.

CRONOLOGIA HISTÓRICA

Para o negro, pouco mudou com o fim da escravatura”. Essa afirmação é de Abdias do Nascimento, em entrevista concedida à Revista Acervo, em 2009, na qual ele conta um pouco das suas dificuldades enfrentadas e a luta diária por mais justiça e resgate.

Era neto de africanos escravizados e filho de sapateiro e confeiteiro. Abdias esteve envolvido nas Revoluções de 1930 e 1932 após ingressar no exército. Formou-se em Economia pela Universidade do Rio de Janeiro em 1938 e integrou a Frente Negra, organização que lutava pelos direitos dos negros.

Em 1944, fundou o Teatro Experimental do Negro, espaço para artistas negros excluídos da indústria na época.

Abdias foi perseguido pela ditadura militar em 1969 e exilou-se nos EUA, onde lecionou em diversas universidades. Lutou incansavelmente para restaurar a dignidade e a visibilidade da população negra.

Abdias Nascimento também foi político, poeta, dramaturgo, artista e autor de importantes obras sobre temas afro-brasileiros.

A sua defesa dos direitos humanos valeu-lhe uma nomeação para o Prêmio Nobel da Paz em 2010. Abdias Nascimento faleceu em 2011, aos 97 anos.

RACISMO NO PARLAMENTO 

Sobre o início de sua atuação na política, Abdias conta na Revista Acervo que sempre teve uma dupla conotação, cultural e política. Para ele, as duas áreas são dimensões da mesma iniciativa, que é a defesa e promoção dos direitos e da cultura da populaçãoAbdias conta na Revista Acervo que sempre teve uma dupla conotação, cultural e política.

Em uma de suas últimas entrevistas para a Revista Acervo em 2009, Abdias conta uma situação na qual ele, ainda menino, pela primeira vez compreendeu o que era injustiça e preconceito racial. O caso envolveu sua mãe, que arrancou dos braços de uma mulher branca um menino de rua que, na ocasião, estava apanhando dela. “As palavras de minha mãe, a atitude dela, foram as minhas primeiras lições de solidariedade racial, a primeira lição de panafricanismo que recebi ainda menino”, contou o ativista.

Abdias também relembra, nessa mesma entrevista, um de seus primeiros contatos com o racismo na juventude e como superou o acontecido. O ativista foi preso na Penitenciária do Carandiru, em São Paulo, e expulso do Exército brasileiro por reagir ao preconceito sofrido por ele. Porém, o fato não foi motivo para parar seu trabalho, muito pelo contrário. Foi na prisão que ele pôde criar sua primeira peça teatral e, após sair, contribuiu para uma cultura brasileira inclusiva, criando o Teatro Experimental do Negro (TEN), no Rio de Janeiro.

“Antes do TEN, os negros não pisavam no teatro Municipal a não ser para fazer faxina! Lá, resgatávamos, no Brasil, os valores da cultura negro africana, degradados e negados pela violência da cultura branco europeia, valorizando o negro através da educação, cultura e arte”, contou..

À Revista Acervo, Abdias lembrava que durante sua gestão como deputado federal, em 1983, foi o único deputado assumidamente negro no Congresso Nacional. Dedicou seu mandato à defesa dos direitos humanos e civis da população negra, o que muitas vezes gerou indignação e tentativas de silenciá-lo na Câmara Federal.

"Quando cheguei à Câmara como deputado pelo PDT, não me deixaram falar. Queriam me cortar e achavam que eu falava mentiras absurdas. A sociedade tem mudado à medida que avançamos. É verdade que é gradual, mas é um processo irreversível", disse Abdias. 

Ao encerrar a entrevista, Abdias deixou uma mensagem para a população brasileira, reafirmando a importância e a necessidade de ouvir as questões raciais no país. "A população negra deste país está desperta, alerta e continuará sua luta. Este é um processo irreversível! Espero que o Brasil tenha o bom senso de ouvir seus gritos em vez de ignorá-los. No futuro eles deverão assumir a liderança do país. É só uma questão de tempo e de melhoria das instituições democráticas”, finalizou.

CRIADOR DO TEN 

Abdias Nascimento (1914-2011) criou o Teatro Experimental do Negro (TEN) em 1944 no Rio de Janeiro, como um projeto inovador que visava a valorização social e cultural dos negros e afro-brasileiros por meio da arte e da educação, além da criação de um novo estilo dramatúrgico que não se limitasse a recriar o que já havia sido produzido em outros países.

Antes de sua criação, Abdias Nascimento havia se incomodado com a ausência de negros e temas importantes para a história da população negra nas apresentações teatrais brasileiras. Quando os negros tinham a oportunidade de participar, eles eram frequentemente direcionados para papéis secundários e pejorativos, reforçando estereótipos desfavoráveis. Abdias percebia que o negro era rejeitado como "personagem e intérprete, e de sua vida própria, com peripécias específicas no campo sociocultural e religioso, como temática da nossa literatura dramática" (Nascimento, 2004, p. 210).

O TEN foi criado como um organismo teatral que promovesse o protagonismo negro. Segundo Abdias Nascimento, desde a sua concepção, o TEN foi criado para defender a "verdade cultural do Brasil". Muitos artistas e personalidades negras se juntaram ao grupo, incluindo o advogado Aguinaldo de Oliveira Camargo, o pintor Wilson Tibério, Teodorico Santos e José Herbel, além de outras pessoas que mais tarde se juntariam ao grupo.

Inicialmente, o corpo de atores do TEN era formado por operários, empregados domésticos, moradores de favelas e modestos funcionários públicos. O TEN oferecia cursos de alfabetização, cultura geral, noções de teatro e interpretação, além de palestras com professores e outros profissionais. O objetivo era capacitar os membros do grupo a enxergar criticamente os espaços destinados aos negros no contexto nacional.

O TEN tinha grandes ambições artísticas e sociais, uma delas sendo a exaltação do legado cultural e humano do africano no Brasil. Como existiam poucas peças dramáticas que refletiam a situação existencial do negro no Brasil, o grupo decidiu interpretar o texto O Imperador Jones , de Eugene O'Neill, que dedicava-se àquele mesmo empreendimento, embora tendo como referência o contexto estadunidense. A estreia da peça se deu em 8 de maio de 1945, no Teatro Municipal do Rio de Janeiro, onde nunca antes havia pisado um negro, seja como intérprete ou como espectador.

Após o sucesso de crítica, que destacou a atuação de Aguinaldo de Oliveira Camargo, o TEN começou a criar e encenar peças dramáticas nacionais que focassem as questões mais importantes da vida afro-brasileira. O primeiro texto escrito especialmente para o TEN foi O filho pródigo , de Lúcio Cardoso, inspirado na parábola bíblica. Foi considerado por parte da crítica como a maior peça do ano.

A atuação do TEN não se limitava ao teatro ou a uma crítica social restrita à esfera discursiva. As aspirações do grupo incluíam a melhoria real da qualidade de vida da população afrodescendente, o que não podia prescindir do engajamento político de artistas, autores, diretores e demais formadores de opinião. Assim, o TEN organizou o Comitê Democrático Afro-Brasileiro e, em seguida, a Convenção Nacional do Negro, que apresentou à Constituinte de 1946, entre outras propostas, a inserção da discriminação racial como crime de lesa-pátria.

Apesar das dificuldades financeiras, o TEN deixou um legado significativo. O grupo foi responsável por inaugurar o teatro moderno brasileiro, inovando com textos de expoentes da literatura e da nova dramaturgia brasileira, além de suas próprias peças. O grupo também atraiu a atenção e a colaboração de outros artistas inovadores, como o diretor Zigmunt Turkov e o cenógrafo Tomás Santa Rosa. Embora tenha sido formado por um curto período de tempo, o TEN semeou uma discussão que permanece em aberto: a questão da ausência do negro na dramaturgia e nos palcos de um país majoritariamente negro.