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TUPÃ-Y

"Eu sou uma pessoa marcada para morrer", disse Marçal de Souza um mês antes de ser assassinado

Liderança Guarani Kaiowá foi assassinada há 40 anos

Por TERO QUEIROZ • 25/11/2023 • 13:10
Imagem principal Marçal de Souza: líder indígena Guarani assassinado por defender diretos dos povos originários

Eu sou uma pessoa marcada para morrer. Mas por uma causa justa a gente morre. Alguém tem que perder a vida por uma causa!”. Menos de um mês depois desta fala, em 25 de novembro de 1983, dois homens foram até a casa de Marçal de Souza Tupã’i, em Antônio João (MS), e o assassinaram com cinco tiros, na boca, e quando ele já estava caído no chão, deram mais dois tiros, um em cada rim.

Liderança Guarani Kaiowá, Marçal era auxiliar de enfermagem do efetivo da Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) na aldeia Campestre, local onde foi executado há exatos 40 anos. 

O crime pretendia interromper a luta de Marçal pela demarcação e proteção à cultura dos povos originários. No entanto, seu legado continua vivo e inspirando as novas gerações a lutarem pela preservação da cultura e da ancestralidade dos povos indígenas.

"Nossas terras são invadidas, nossas terras são tomadas, os nossos territórios são invadidos… Dizem que o Brasil foi descoberto. O Brasil não foi descoberto não, o Brasil foi invadido e tomado dos indígenas do Brasil. Essa é a verdadeira história", reclamava Marçal.

Durante sua vida, ele denunciou a expropriação de terras indígenas, a exploração ilegal de madeira, a escravização de indígenas e o tráfico de meninas indígenas. Ele foi um defensor incansável dos povos nativos da América do Sul e um dos líderes precursores das lutas dos guaranis pela recuperação e pelo reconhecimento de seus territórios ancestrais, apesar de todas as ameaças e perseguições que sofreu por anos.

Os mandantes do assassinato foram Líbero Monteiro e Rômulo Gamarra. Mesmo com inúmeras provas contra eles, a Justiça sul-mato-grossense os absolveu. Em 2008, o crime prescreveu e ninguém foi responsabilizado pela morte de Tupã-Y (pequeno Deus).

Postumamente, Marçal de Souza foi condecorado como Herói Nacional do Brasil.

MEMÓRIA DO PAI

Manaus - Edna Silva de Souza, filha de Marçal, fala sobre a luta do pai pelos direitos indígenas - Foto: arquivo pessoalManaus - Edna Silva de Souza, filha de Marçal, fala sobre a luta do pai pelos direitos indígenas - Foto: arquivo pessoal

A filha de Marçal, professora de história Edna Silva de Souza, havia feito 33 anos de idade no dia 22 de novembro de 1983, e contou como o pai estava naquele dia. “Ele estava apreensivo e disse pra gente que estava se sentindo perseguido pelos discursos que vinha fazendo em defesa dos direitos dos indígenas à terra. Ele denunciava tudo o que via de errado. Mas a gente vivia numa ditadura. Não existia liberdade de expressão”, lembrou a filha. 

Ainda hoje, 25 de novembro de 2023, a família acredita que responsabilizará os mandantes do assassinato de Marçal. “Desde aquele dia buscamos por justiça. Luto pela memória do meu pai há 40 anos”, disse a filha, hoje com 73 anos.

Como educadora ao longo de 35 anos em escolas indígenas na região, Edna sempre reverberou o legado do pai. “Por onde fui, contei a história dele. Era um revolucionário. Onde ia, as pessoas paravam para ouvir”.

Isso gerou os problemas. “Ele procurava esclarecer os direitos para as pessoas. Na época, era chamado de agitador”, disse a professora.

Ela recordou que a convivência com o pai havia ficado restrita com a função dele na Funai, mas Marçal não deixava de voltar para casa desde que foi transferido de cidade, três anos antes.  “Meu pai recebia o pagamento dele como auxiliar de enfermagem e voltava para Dourados todo mês para fazer compras para casa”.

Além de Edna, para seguir na briga pelos direitos indígenas, Marçal deixar mais 6 filhos em sua casa em Dourados.

Embora sua família o alertasse para ser cauteloso e evitar sair à noite, ele permaneceu firme em sua missão. A honestidade de Marçal não tinha preço, mas alguns queriam que ele abandonasse os protestos.

RESPOSTA DO PAPA

Marçal de Souza Tupã-i discursa ao papa João Paulo II, em Manaus, em 1980. Foto: Paulo Suess/CimiMarçal de Souza Tupã-i discursa ao papa João Paulo II, em Manaus, em 1980. Foto: Paulo Suess/Cimi

Durante discurso ao Papa João Paulo II em 1980, num cúpula em em Manaus (AM), Marçal denunciou ao mundo crimes cometidos no Brasil contra indígenas e afirmou que o Brasil não foi “descoberto”, mas invadido e tomado dos povos indígenas.

Quarenta anos depois, os Guarani e Kaiowá receberam uma carta enviada pelo atual pontífice, Papa Francisco, em resposta a uma manifestação entregue a ele em maio deste ano. A carta, destinada à Aty Guasu, foi entregue, em 24 de novembro, simbolicamente pelo bispo de Dourados, Dom Henrique Aparecido de Lima, representando a Igreja local, à Assembleia Geral dos Kaiowá e Guarani, no tekoha Kunumi Vera, em Caarapó. 

Também na 6ª feira (24.nov), foi realizado um ato em memória de outra importante liderança Kaiowá e Guarani que partiu recentemente, a rezadeira Damiana Cavanha, no tekoha Apyka’i. Em Dourados, no final da tarde, o grupo Teatro Imaginário Maracangalha apresentou a Memória martirial encenada: 'Vida e história de Marçal Tupã’i'.

PROGRAMAÇÃO DE UMA SEMANA

Para celebrar sua luta e sua memória, o evento “Marçal, presente: memória dos 40 anos do assassinato de Marçal de Souza Tupã’i” é realizado de 22 e 25 de novembro, com diversas atividades distribuídas entre os municípios de Caarapó e Dourados (MS).

A atividade é realizada pela Aty Guasu – Grande Assembleia dos Povos Kaiowá e Guarani, Ministério Público Federal (MPF), Conselho Indigenista Missionário (Cimi), Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD) e familiares de Marçal de Souza.

Entre as entidades e organizações apoiadoras estão a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) Regional Oeste 1, o Centro de Estudos Bíblicos (CEBI), a Comissão Regional de Justiça e Paz (CRJP), a Conferência dos Religiosos do Brasil (CRB), a Comissão Pastoral da Terra (CPT) – regional Mato Grosso do Sul, do Movimento dos Trabalhadores rurais sem Terra (MST) e a Campanha Permanente Contra os Agrotóxicos e Pela Vida – Comitê Mato Grosso do Sul.

NAS ESCOLAS 

A semana começou com homenagens à memória de Marçal, com atividades lúdicas e festivas e exibição de audiovisuais junto às escolas indígenas da Reserva Indígena de Dourados, nos dias 22 e 23 de novembro.

Estas atividades são organizadas pela coordenadoria de cultura da UFGD e pelo Projeto de Extensão “Aproximando universidade e escola, teoria e prática: oficinas de história e cultura indígena nos campos de estágio”, com a colaboração de estudantes de graduação e pós-graduação do curso de História da UFGD.

MPF PEDE ANISTIA PARA MARÇAL DE SOUZA

O assassinato de Marçal evidenciou a persistência de um cenário brasileiro marcado por colonização e dominação violenta, no qual a história e a memória dos grupos sociais locais são frequentemente apagadas.

Nesta semana, o MPF apresentou um pedido de anistia em nome da família do líder, com o objetivo de reparar parte dos prejuízos causados à família pela perseguição praticada por agentes do Estado contra ele.

Marçal, que trabalhava como servidor da Funai, sofreu ameaças e agressões de seus superiores, além de ter sido removido arbitrariamente de sua lotação em razão de seu posicionamento político e ativismo em defesa dos direitos dos povos Guarani e Kaiowa. Ele também foi alvo de permanente e ilegal monitoramento pelos órgãos estatais de inteligência. As provas que compõem o pedido de anistia constam de dossiê da Funai e outras informações de órgãos oficiais que atestam a perseguição sofrida por Marçal de Souza.

Para o MPF, as provas evidenciam a motivação política dos atos administrativos praticados contra o líder indígena, pressuposto para a concessão da anistia. "Portanto, é urgente que o Estado brasileiro reconheça essas violações e conceda anistia política “post mortem” a Marçal de Souza, de acordo com a Lei 10.559/2002. O MPF também recomenda a reparação econômica aos familiares dele, tendo em vista que os atos de exceção provocaram sua desestruturação, colocando em risco, portanto, os membros de sua família". 

Por fim, o MPF requer a implementação de medidas que viabilizem comunicação efetiva e capaz de disseminar a trajetória de Marçal de Souza e sua luta frente a defesa dos direitos fundamentais dos povos originários. A Lei 10.559/2002, que dispõe sobre o regime do anistiado político, oferece os parâmetros e as diretrizes fundamentais quanto à constituição da anistia e quanto aos seus efeitos. Em seu artigo 8º, a norma prevê que “é concedida anistia aos que, no período de 18 de setembro de 1946 até a data da promulgação da Constituição, foram atingidos, em decorrência de motivação exclusivamente política, por atos de exceção”. No caso de Marçal de Souza, a Lei 10.559/2002 deve ser aplicada para garantir a devida reparação, sob a forma de compensação, aos familiares de Marçal de Souza.

A VIDA E O LEGADO DE MARÇAL: UMA LUTA PELOS DIREITOS INDÍGENAS

Marçal nasceu em 24 de dezembro de 1920, em Ponta Porã (MS), quando os territórios Kaiowá e Guarani, no sul de Mato Grosso do Sul, estavam sob o controle da Companhia Matte Laranjeira, que explorava a mão de obra indígena nas plantações de erva-mate da região. Infelizmente, a morte brutal de Marçal exemplifica o destino de muitos líderes indígenas que foram assassinados impunemente por lutarem por terra, justiça e dignidade. Sua vida também reflete os desafios e constrangimentos que os Guarani e Kaiowá enfrentaram no Mato Grosso do Sul.

A pressão das políticas de desenvolvimento e colonização, o autoritarismo e a tutela estatal – primeiro pelo Serviço de Proteção ao Índio (SPI), depois pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai), instituída sob o regime repressivo da ditadura – e a opressão do agronegócio fizeram com que Marçal e o seu povo ficassem confinados em áreas cada vez menores dentro de seus próprios territórios, com cada vez menos autonomia.

"Vivemos pela teimosia. Temos que perseverar, meus irmãos e irmãs, para continuar lutando e lutando para sobreviver neste vasto e grande país que era nosso e nos foi todo roubado", disse ele em um de seus discursos emblemáticos.  

De Ponta Porã, a família de Marçal mudou-se para a aldeia Tey'i Kue, em Caarapó (MS), e logo depois para a aldeia Jaguapiru, na Reserva Indígena Dourados (MS). Órfão aos sete anos, Marçal foi acolhido pela Missão Caiuá, onde trabalhou como professor, intérprete e missionário na Igreja Presbiteriana.

Na década de 1940, conheceu antropólogos como Egon Schaden e Darcy Ribeiro, para quem atuou como tradutor e intérprete da cultura guarani – e os impressionou com sua inteligência e palavras cortantes. "Marçal foi a voz mais eloquente em defesa da causa indígena que já ouvi", disse Darcy Ribeiro.

Em 1959, tornou-se auxiliar de enfermagem e, de 1963 a 1972, foi capitão do Posto Indígena de Dourados, tornando-se funcionário do SPI e posteriormente da Funai.

Por não concordar com o autoritarismo e a perspectiva integracionista que imperavam nessas agências, principalmente durante a ditadura, foi substituído e passou a ser perseguido – sendo até espancado. "Por sua prática diferenciada, consciente e humana, em 1972 Marçal foi afastado do cargo de capitão, exercendo apenas a função de auxiliar de enfermagem. Foi uma forma de diminuir sua influência na área", explicou o historiador Benedito Prezia.

Na década de 1970, passou a participar das primeiras Assembleias de Caciques Indígenas, incentivado pelo também emergente Conselho Indígena Missionário (Cimi). Nesses espaços de articulação nacional, consolidou-se como líder não só do seu povo, mas de todos os povos indígenas do Brasil.

Em 1980, participou da fundação da União das Nações Indígenas (UNI), primeira articulação do movimento indígena nacional, da qual foi seu primeiro vice-presidente. Nesse mesmo ano, por sua inteligência, experiência e capacidade, foi escolhido pelo movimento indígena para falar ao Papa João Paulo II no encontro realizado em Manaus. Seu discurso antológico foi um marco na denúncia da realidade dos povos indígenas no Brasil.

A partir daí as ameaças intensificaram-se ainda mais: Marçal, como confidenciou mais de uma vez, foi marcado para morrer. Apesar disso, ele não recuou em sua luta. Nesse mesmo ano, foi morar na aldeia Campestre, em Antônio João, e passou a acompanhar famílias Kaiowá que conseguiram resistir à pressão dos agricultores de uma pequena área chamada Pirakua.

Além das ameaças, foi alvo de uma tentativa de suborno: cinco milhões de cruzeiros para convencer os Kaiowá a desistirem de Pirakua. Recusou a oferta e continuou a apoiar a luta dos seus “compatriotas”, como costumava dizer.

Apesar de diversas denúncias a diversos órgãos estatais, Marçal não recebeu proteção contra as ameaças: para os poderes militar e agrário, era uma pessoa indesejada. E foi assim que, na noite de 25 de novembro, encontrou a morte numa emboscada.

As investigações e o julgamento dos assassinos arrastaram-se durante décadas, lentamente. Um dos principais suspeitos, Rômulo Gamarra, funcionário do agricultor Líbero Monteiro de Lima, chegou a ser preso por alguns meses em 1984.

Exames de balística comprovaram que um dos projéteis que atingiu Marçal partiu de seu revólver. Apesar disso, em 1993, os acusados foram julgados por um júri e absolvidos por falta de provas.

“Para entender o assassinato de Marçal, que é paradigmático de tantas vidas ceifadas no Brasil e em toda a América Latina, precisamos situá-lo no contexto da ocupação de territórios indígenas por conquistadores, colonizadores e promotores do agronegócio”, considerou Paulo Suess , conselheiro teológico do Cimi. “Ele morreu como um mártir político, sem partido, e um profeta sem igreja”, completou. 

FONTE: CIMI, AGÊNCIA BRASIL


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