A desinformação foi um fator decisivo nas eleições de 2024 em Juazeiro (BA) e Campo Grande (MS), cidades separadas por 2.877 km.
Em Juazeiro, 160.276 eleitores estavam aptos a votar e a maioria escolheu Andrei (MDB) no primeiro turno, que obteve 48,85% dos votos válidos.
Em Campo Grande, a disputa foi para o segundo turno, onde Adriane Lopes (PP) venceu Rose Modesto (UB) com 51,45% dos votos, em um cenário marcado por trocas de acusações e informações falsas.
Com o crescimento das plataformas digitais, o Vale do São Francisco e a população de Campo Grande enfrentam o desafio das notícias falsas e narrativas manipulativas, que prejudicam a percepção pública e a democracia. Esse impacto afeta tanto a política quanto a vida diária das comunidades periféricas.
Em Juazeiro, Mineia Clara dos Santos, agente comunitária e moradora da comunidade da Alfavaca, no Salitre, uma comunidade rural que fica a 37 km da sede do município, relatou como as redes sociais, especialmente o WhatsApp, se tornaram uma via rápida para o acesso à informação. "Eu recebo as notícias pelos blogs da região, mas geralmente no WhatsApp a gente tem mais curiosidade de olhar. Muita gente joga lá. É muito mais fácil de chegar", introduziu. A agente comunitária conta que, no começo, repassava muitas mensagens que recebia sem verificar a veracidade. "Disparava demais. Depois, as companheiras me chamaram a atenção: 'Você viu que você passou um fake?'. Aí comecei a me policiar", explicou.
Militante em movimentos sociais, Mineia afirmou que verifica as fontes antes de compartilhar qualquer notícia, mas admite que o contexto emocional muitas vezes impulsiona o compartilhamento imediato. "Hoje eu já chamo a atenção de algumas companheiras: 'Olha, cuidado, isso aí pode ser mentira'. Mas, mesmo com cuidado, às vezes a emoção faz muita gente jogar direto. Eu mesma já fiz isso e depois saí apagando".
A desinformação, em 2024, foi utilizada por aliados para defender seu candidato ou mesmo por candidatos para atacar adversários. Na capital sul-mato-grossense, a prefeita eleita é acusada de usar mentiras para manipular votos em comunidades carentes, incluindo famílias desalojadas na primeira quinta-feira (31.out.24), após a eleição.
Conforme apurado, a prefeita autorizou que patrolas passassem por cima de casas de alvenaria e de madeira, onde 50 pessoas moravam em uma área pública, na rua Poente, na região do Jardim Tarumã. O terreno é alvo de lobby da associação de moradores do bairro de luxo Eparque Campo Grande, da loteadora Emais Urbanismo, empresa do Grupo Emais, fundado em 2007 por Edson Tarraf e Edson Tarraf Junior. "Vieram com a patrola aqui, passaram em cima de tudo, da minha casa de madeira e das casas de tijolo também. Antes da eleição, a Adriane Lopes prometeu lá no comitê dela que nos ajudaria, como ela já estava na prefeitura. Infelizmente, todo mundo aqui votou nela. Acreditamos e elegemos a mãe da mentira e agora estamos na rua", lamentou o pedreiro Ambrósio Gomes, de 50 anos, em entrevista ao TeatrineTV.
A revolta entre os moradores que se sentiram "alvos especiais" das ações da prefeita contradiz as promessas feitas durante a campanha. "Todo mundo votou nela, acreditando que ela ia ajudar a gente", reforçou Luana Santos, uma cozinheira da comunidade desalojada.
Questionados se consideram que Adriane Lopes produziu peças de fake news para convencê-los a votar nela, os moradores foram unânimes: "Foi bastante fake news. Só ver a campanha dela. E não foi só para nós, não, foi exatamente assim em outras comunidades, até adesivo colaram do 11. Agora, cadê ela? Ela sumiu. Se não foi fake news, cadê ela? Por que estão tirando nossas coisas daqui? Como eles têm mais condição, estão pagando esse pessoal que está aqui, que vem com a patrola, que vem com o caminhão... O certo é eles chegarem com o papel, aí sim. Agora chegar derrubando tudo, de pessoas que não têm nem condição. Tem gente aqui que pegou o dinheiro emprestado, tem gente que pegou o dinheiro das férias, que de pouquinho foi fazendo, aí eles vieram e já derrubaram", disseram em conjunto cerca de 6 pessoas que estavam desoladas sobre uma árvore enquanto a chuva começava a cair.
Além de políticos, a comunidade acusa jornais de distorcerem informações, alegando que "havia só um barraco no local". "É mentira! Vocês estão vendo aí, olha lá, tudo de alvenaria... Eles mentiram. Um homem chamado Rafael disse que só tinha um barraquinho, e era tudo de cerca e a gente invadiu e fez só isso, mas é mentira. Ele não fala que tinha casa de alvenaria... você acha que vai ficar passando humilhação? Esse povo e essas mentiras só querem prejudicar quem é pobre".
De acordo com a cozinheira Luana, toda a comunidade foi alvo de fakes e acabou votando em Adriane Lopes, após ela prometer ajudar. "Faço um apelo para Adriane vir aqui, porque olha em outros barracos, em outros lugares que ocuparam, ela prometeu que não ia tirar ninguém e tirou. E se ela fosse eleita, ela prometeu isso para a gente, né? Que ia ajudar a gente. Todo mundo votou, porque nós já estávamos aqui, né, na eleição", lembrou.
Ambrósio também revelou que votou em Adriane com base em promessas que agora sabe que eram mentiras. "Eu votei nessa prefeita aí por causa da promessa dela, que ela não está cumprindo e nem vai cumprir agora, que ela está com 4 anos agora, né? Que ela vai fazer o trabalho. Então, o que aconteceu é que eu pensei naquele negócio que os antigos falam: 'não mexe no time que tá ganhando', então, ela já estava lá na prefeitura. Ela já sabia das obras, dos projetos... Só que ela mentiu para todo mundo e isso é desumano. Se ela fez isso agora, ela vai fazer mais coisas ainda à população, quer dizer, o povo que votou nela, ela não está nem aí com a vida do pobre, entendeu? Adriane Lopes, a mulher do Lídio Lopes, que fez essa merda aí", completou Ambrósio, revoltado. Veja a galeria que mostra a ação agressiva da prefeitura contra os moradores carentes:
IMPACTO DAS REDES NA SAÚDE E COMPRA DE VOTOS
Em Juazeiro, a equipe de reportagem do Carrapicho Virtual constatou que múltiplos grupos no WhatsApp são uma das razões para a rápida disseminação de informações falsas nas comunidades rurais. Mineia contou que, por estar em 15 grupos, teve sua saúde mental afetada. "Isso estava me adoecendo mentalmente. Saí de alguns grupos que não faziam bem. A gente se estressa, entra em discussões que nem valem a pena", desabafou. Ela estimou que passa cerca de três horas diárias no celular, impactada pela enxurrada de informações políticas.
Apesar de as redes possibilitarem grande circulação de desinformação, também possibilitam aproximação e o surgimento de novas personalidades engajadas em locais bastante distantes geograficamente. Na comunidade Lagoa do Jacaré, na região de Massaroca nordestina, a 73 km da sede do município, Geisiane da Silva destacou que a política entrou em sua vida principalmente por meio da irmã, que fazia parte de grupos de apoio a candidaturas femininas. "Eu não estava nos grupos diretamente, mas via as notícias pelo WhatsApp dela".
Desde que iniciou sua vida nas redes, Geisiane explicou que só compartilha informações públicas e eventos presenciais, evitando conteúdos políticos sem confirmação. "Eu só compartilho o que presenciei. Notícias políticas, não repasso sem ter certeza", garantiu. Com WhatsApp e Kwai como motores da informação nas comunidades, influenciadores locais utilizaram as redes para promover candidatos. "A maioria das informações que eu vi eram de influenciadores do Kwai que publicavam sobre os eventos e as alianças dos candidatos", disse Geisiane. Para ela, o impacto foi ainda maior com a visita do governador na semana das eleições. "Foi um momento decisivo para muita gente que estava indecisa. A visita deu firmeza", acrescentou.
Além da desinformação, Mineia e Geisiane relataram que no sertão nordestino as comunidades foram alvo de compra de votos. "A compra de voto influencia muito, principalmente nas comunidades rurais. Tem gente que troca voto por cirurgia, consulta, guia do SUS e até laqueadura. Esse favoritismo político é um peso difícil de quebrar", completou a agente comunitária.
DESAFIOS E SOLUÇÕES PARA A DESINFORMAÇÃO
Tendo como alvos eleitores mais vulneráveis, como os da periferia e comunidades rurais, a desinformação virou um mecanismo pouco controlável de "conquista de votos". A socióloga e doutora em Comunicação Teresa Leonel, que também é pesquisadora em desinformação, observou que as fake news circularam rapidamente, prejudicando candidatos e desviando o foco dos eleitores. Para ela, "a velocidade com que a desinformação circula torna o combate muito desafiador", uma questão agravada pela dificuldade em checar fatos em tempo real e pela falta de regulamentação efetiva das plataformas.
Leonel avaliou a surpresa no resultado eleitoral em Juazeiro: "Tivemos uma eleição atípica em Juazeiro. O que estava posto, o que estava colocado? O que incentivou as pessoas a irem para a urna para dar essa virada?". A professora deu ênfase à ação midiática que se tinha sob as projeções dos candidatos, em um cenário em que a atual prefeita, Suzana Ramos (PSDB), já estava praticamente reeleita, a partir da observação de suas redes sociais. Nos canais oficiais da prefeita, ela estimava ter cerca de 52% dos votos contra 23% do candidato que foi eleito, Andrei (MDB). "No período de eleição foi muito isso, sabia que aquilo era falso, mas fazia com que determinado candidato se prejudicasse, então circulava aquela informação", observou.
Os resultados das urnas mostraram uma realidade distinta daquela que circulava em meio à desinformação. A eleição em Juazeiro registrou um total de 134.261 votos, incluindo 3.342 votos brancos, representando 2,49% do total, e 5.713 votos nulos, equivalentes a 4,26%. A abstenção foi significativa, com 26.412 eleitores não comparecendo, o que representa 16,44% dos eleitores aptos a votar. O resultado foi a vitória de Andrei, que obteve 61.163 votos, ou 48,85% dos votos válidos.
A SAÍDA: REGULAMENTAÇÃO DAS REDES SOCIAIS
Diante de um cenário de grande vulnerabilidade do eleitorado às desinformações, Leonel defendeu uma regulamentação mais rigorosa das redes sociais e sugere programas de alfabetização midiática, que poderiam fortalecer o senso crítico dos eleitores. Ela disse acreditar que grupos comunitários e escolas locais devem investir na formação dos cidadãos para checar a veracidade das informações que consomem. "Esse trabalho de formiguinha é o que vai fazer a diferença. Criar grupos de debate, promover discussões e ensinar a população a desconfiar de informações espetaculares", sugeriu.
Para a especialista, a solução também passa pela responsabilidade das plataformas digitais, que deveriam monitorar com mais rigor o conteúdo compartilhado. "As plataformas alegam liberdade de expressão, mas, como já destacou a ministra Carmen Lúcia, a liberdade não pode ser usada para cometer crimes ou destruir reputações", afirmou ela, defendendo a criação de um órgão regulador específico, similar ao Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar), para responsabilizar as plataformas pela disseminação de conteúdos falsos.
A pesquisadora destacou ainda que questões sociais, como o acesso à informação e a desigualdade no país, agravam o problema, refletindo a realidade da população. "É importante salientar que essas grandes plataformas lucram com isso, ganham com o sofrimento da população". Teresa enfatizou também que essa pequena parcela que lucra está isenta das consequências, promovendo um ideal distorcido de liberdade de expressão que prejudica, sobretudo, os moradores de comunidades e periferias. O impacto das fake news atinge todas as camadas sociais em um efeito dominó, e defendeu: "A regulamentação tem o papel de responsabilizar esses processos, pois existem algoritmos que detectam replicações e são capazes de influenciar o conteúdo que consumimos".
Para contornar o cenário de desinformação que impactou nas eleições em Juazeiro e em Campo Grande, Teresa Leonel argumentou que a tarefa de combatê-la não pode ser exclusiva de especialistas ou jornalistas; é uma responsabilidade de toda a sociedade. Ela encorajou as pessoas a questionarem as informações que recebem e a contribuírem para desmentir conteúdos falsos que possam causar danos. "Esse é o nosso grande desafio", resumiu; ela ainda observou: "Enquanto a desinformação cresce, precisamos agir, porque a verdade e o compromisso social são as âncoras de uma democracia saudável". Para além de regular as big techs, Leonel sinalizou que grupos comunitários e escolas locais devem investir na formação dos cidadãos para verificar a veracidade das informações que consomem. "Esse trabalho de formiguinha é o que vai fazer a diferença", concluiu.
Esta reportagem foi produzida em parceria entre o Carrapicho Virtual (BA) e o TeatrineTV, dois veículos de comunicação independentes que integram o programa Diversidade nas Redações – Desinformação e Eleições, da Enóis, com o patrocínio da Google News Initiative. Ainda, o projeto conta com o apoio da Agência Lupa, Agência Tatu, do Desinformante e do Reocupa.
Além do TeatrineTV e o Carrapicho Virtual (BA), integram o programa Diversidade nas Redações em 2024 os seguintes veículos independentes de comunicação: Agência Lume (RJ), Carta Amazônia (PA), Com_Texto (MT), Correio do Lavrado (RR), Olhos Jornalismo (AL), Nonada Jornalismo (RS), Transmídia (SP) e Sul21 (RS).