‘A Voz de Guadakan’, novo filme do aclamado cineasta Joel Pizini, estreou na noite do sábado (20.jul.24), na Mostra Competitiva da 2ª edição do festival Bonito Cinesur, que ocorre de 19 a 27 de julho em Bonito (MS). Na produção, Joel tem como protagonistas Gleycielli Nonato, a primeira escritora indígena de MS, e sua mãe, a multiartista Maria Agripina.
Bastante emocionadas, Maria e Gleycielli falaram à reportagem do TeatrineTV ao final da sessão: “Guadakan são as águas do Taquari, é a minha ancestralidade de sangue que pulsa em minhas veias e é o filme que está mostrando essa trajetória de uma família nuclear Guató, que saiu pós-guerra do Paraguai, então essa é a identidade de toda a nossa trajetória e a nossa arma que é a arte. Minha mãe é artista, minha filha, minha avó, meu avô contador de histórias, então é a arte que nos mostrou o quão importantes somos”, comentou Gleycielli.
Moradoras de Coxim, mãe e filha celebraram o protagonismo da cidade, onde as filmagens foram realizadas. O documentário de Pizini tem cerca de 26 minutos e expõe a luta de mulheres guatós por meio da arte, para inclusive, se reconhecerem como parte do povo canoeiro.
Ao final da sessão, Gleycielli revelou que estava vendo dois viéses da sua literatura: a literatura de ancestralidade e a literatura regional. “Eu amo Coxim, eu amo a minha ancestralidade, eu amo ser Guató, mas eu também amo a minha Coxinlidade”, anotou.
Além de protagonizar Guadakan, Gleycielli também participou do filme “Rotas Monçoeiras: A História de um Rio e seu Povo”, dirigido por Silas Ismael e Cid Nogueira, com produção de Ariel Albrecht, todo filmado em Coxim. “Rotas Monçoeiras” também foi exibido na noite do sábado, na Mostra Competitiva do Cinesur. “Tem dois filmes aqui que são dos dois rios. Tem um rio que corre pro Paraguai e tem outro que cruza a cidade, que é o Taquari e o Coxim. Pro outro lado tem a rota das monções que é rio Coxim, e esse rio é o rio que está debaixo dos meus pés, é o rio que me inspira, é o rio que eu acordo, abro minha janela e o vejo. É a cidade onde a minha família criou raiz após sair do Pantanal de Anhanguera, pra chegar ali no Pantanal dos Paiaguás, é o nosso núcleo, é onde eu fui criada e é lindo ver os dois no mesmo dia e é lindo saber que os meus filhos estão assistindo os dois aqui dentro, no mesmo dia e ter essa oportunidade de mostrar aqui no festival é maravilhoso”, apontou Gleycielli.
Para Gleycielli, a chegada de duas produções de Coxim ao Cinesur mostra que é preciso fazer mais cinema na cidade para que os estereótipos sejam superados. “Eu sou de uma cidade do interior, meu Coxim ‘véi de guerra’, que eu amo. E vou ser sincera, a população e os artistas acham que o cinema está num pedestal de mármore, que é inalcançável. Quando você vê essa quantidade de incentivos, de injeções financeiras pro cinema e um festival como esse onde tem uma mostra sul-mato-grossense, onde tem dois trabalhos gravados lá, um que fala sobre as águas da cidade e outro sobre as águas ancestrais da cidade e com atores de lá, com pessoal de lá, com o pessoal ajudando lá, isso vai fazer com que eles enxerguem que é possível. Porque ainda enxergam o cinema como um pedestal de mármore, eles não conseguem enxergar, por exemplo, como enxergam o músico do barzinho, que está mais acessível. Esses editais estão aí pra aproximar cada vez mais a população leiga do cinema”, defendeu.
IDENTIDADE GUATÓ
Mãe de Gleycielli, a multiartista Maria Agripina, falou da importância de "A voz da Guadakan" para o povo Guató. "[Somos] um povo que é considerado exterminado, entre aspas. A gente está fazendo um retorno, de volta pra casa e nesse retorno, no caminho a gente vai buscando os nossos pedaços. É muito importante pra nossa resistência, pra mostrar nossa resiliência, mostrar a identidade do povo Guató, essa história do povo que ao contrário do que dizem, não morreu, só estava adormecida".
Para ela, assistir ao filme trouxe lembranças que a emocionaram. "Passa muita coisa na minha cabeça. Lembro da luta da minha avó, das coisas que eu vivi pelo preconceito, de ter que esconder que era indígena, o que eu nunca entendia e só agora eu entendi", revelou.
Agripina também recordou o momento em que a leitura entrou em sua vida, ainda na infância. "Quando eu morava no Pantanal e era pequena, eu ficava imaginando. A gente só via gente quando a Marinha vinha dar vacina ou quando a chalana vinha pra vender as coisas. Tinha um sargento que me levava um gibizinho preto e branco e um coloridinho que era de um fantasma, então eu ficava vendo ele ler, eu pedia pra ele ler pra mim. Eu sabia o som das palavras, mas eu não sabia ler e eu ficava imaginando quando eu ia conseguir fazer o que ele fazia, ler".
Ao aprender a ler, a artista viu a oportunidade de compartilhar o conhecimento com sua família. Decisão que gerou mudanças significativas."Quando eu vim pra cidade eu tinha doze anos. Eu aprendi a ler e aí eu ensinei o meu pai a ler. Ele era um peão que foi obrigado a ser peão e nunca foi numa escola, mas ele aprendeu a soletrar as palavras, ele aprendeu a ler, tirou sua CNH, foi ser motorista na fazenda. Só agora, recentemente, eu fui entender uma frase que ele sempre dizia, que a leitura deu asas pra ele e que foi graças à CNH dele que ele saiu do Pantanal e foi ser caminhoneiro. Imagina? Ele foi ser caminhoneiro, foi conhecer São Paulo, foi conhecer o Rio, sabe? E aos 45 anos eu consegui fazer uma faculdade e entender um pouquinho mais da minha história, porque eu meu formei em História e me especializei em história e cultura dos povos indígenas e continuo pesquisando ainda. Olha quanta coisa eu tenho encontrado, quantos pedaços eu tenho encontrado nesse retorno pra casa", refletiu.
Agripina contou também que seu contato mais profundo com a arte ocorreu por conta de um antigo relacionamento. "Eu criei os meus filhos dentro da arte, fugindo de todo esse processo de massificação, de preconceito. Eu vi na arte um caminho que nem mesmo eu sabia que era o caminho da minha liberdade. Eu fugi no meu primeiro casamento, quando conheci uma pessoa que era do circo e eu passei a ser circense. Em 1998 eu conheci o teatro e a partir de lá eu venho trilhando os meus caminhos. Eu criei a minha filha Gleycielli como o xodózinho do grupo de teatro. Ela foi criada dentro da arte", recordou, orgulhosa do rumo que a história de sua família está tomando. "Agora, olha como a gente tá voando longe, olha como a minha filha está contando e recontando a nossa história através da literatura. Através da arte, do cinema, a gente tá conseguindo mostrar a nossa existência, a nossa resiliência. A gente tá conseguindo trilhar o caminho de volta pra casa, mostrando que somos Guatós, que temos orgulho desse sangue que corre em nossas veias", celebrou.
'EQUAÇÃO DO NÃO-INDÍGENA'
Joel Pizini explicou que Guadakan é um nome mítico do Pantanal. “É uma sonoridade, uma coisa linda e a Gleycielli já tinha o espetáculo de mais de 10 anos chamado Guadakan e aí eu achei interessante como se fosse dar voz ao Guadakan e elas são as intérpretes desse universo mágico que é o Pantanal”, detalhou o cineasta.
Segundo Joel, a estreia do filme no Bonito Censur foi uma mistura profunda de emoções. “Quando a gente tá compondo o filme, a escala é menor, tá ali numa coisa mais intimista e com o público se transforma numa outra experiência, mais sensorial, com a resposta, né? Então, a gente que faz o filme fica assistindo quem vê o filme e é uma experiência que você fica ali, numa grande angular, percebendo cada gesto, cada reação. É tudo muito inesperado, a gente não tinha a menor ideia de como seria em público”, revelou.
Para o cineasta, ‘A Voz de Guadakan’ surge em meio a um momento histórico para realizadores indígenas, e que é preciso, portanto, fazer uma equação que permitisse que o trabalho fosse construído com as mulheres indígenas. “A gente é não-indígena, como fazer um filme com e não sobre, né? Pra poder dar espaço e ao mesmo tempo ter um olhar autoral, essa equação é muito delicada, é um equilíbrio delicado, porque a gente tá num momento de reparação histórica e o protagonismo é indígena e tem vários realizadores e também paralelamente, eu tô produzindo diretores indígenas como o Divino Xavante, agora eu vou colaborar numa série do Takumã Kuikuro, que eu também sei que é a hora e a vez deles, né? Ao mesmo tempo, eu fiquei muito tranquilo quando eu fiz o ‘500 almas’, eu estava lembrando a sessão do CineCultura, com a Dona Josefina Guató. Na época eu fiquei com medo pensando no que ela ia achar do filme, porque eu não sou indígena, eu não sou antropólogo e ela falou só uma frase: ‘agora sim eu posso entrar pra eternidade’, ali eu consegui a licença que eu precisava”, lembrou Joel aos risos.
O diretor de Guadakan destacou ainda a importância histórica de comentar a trajetória literária da coxinense. “A Gleycielli enfrenta uma lógica da escrita, que é sempre uma barreira pra eles e ela consegue, agora já vai pro terceiro livro e ela é considerada a primeira escritora de todo o Pantanal. Achei que era importante dar voz, mas ao mesmo tempo tomando cuidado”, completou Joel.
DIREITOS INDÍGENAS E DA MULHER
Diretor de Fotografia de Guadakan, Renan Braga, contou como entrou no projeto. “O Joel me fez esse convite e a proposta dele foi bem aberta, de a gente ir até Coxim, a gente ir até a casa da Gleycielli, ouvir o que ela tem a dizer e adaptar pra linguagem cinematográfica de poesia que é a linguagem que o Joel construiu durante a carreira dele e de tentar adaptar aquilo que a Gleycielli escreveu, aquilo que é a poesia dela. Ela levou a gente pra alguns lugares, ela buscava as ações e os gestos dali. Era um processo criativo pra todo mundo que estava ali, a Gelycielli apresentou também a família dela que mostrou pra gente o caminho pra contar esse filme”, lembrou.
Para Renan, mostrar o filme em Bonito é muito importante, principalmente no cenário político atual. “A gente estava vindo de um momento muito delicado da nossa política no Brasil e nesse momento os indígenas Guarani Kaiowá de Douradina estão sendo ameaçados por ruralistas e o governo do estado, ajuda a fazer esse festival, mas ao mesmo tempo a Polícia Militar está lá, prestes a fazer um despejo ilegal. Espero que as autoridades tenham essa noção de que é sim bonito preservar o meio ambiente como diz o slogan desse festival, mas também é necessário preservar a vida de quem preserva o meio ambiente, que são os povos indígenas que estavam aqui antes da gente e que têm muito o que mostrar pra nós, intelectuais, cineastas, jornalistas. Temos que ouvir, antes de a gente fazer um filme a gente tem que se calar e aprender com eles pra trazer eles pra conversa”, protestou
A Diretora de Som de Guadakan, Mariana Farias, classificou o filme como ‘uma experiência desafiadora e mágica’. “Para mim enquanto mulher iniciante no Audiovisual. Faz só três anos que eu estou dentro do Audiovisual e aí eu comecei a trabalhar com o Renan Braga, que é diretor de cinema em Campo Grande e abriu a oportunidade pra eu trabalhar com o Joel, também. Foi uma experiência mágica, com a Gleycielli, poder trabalhar com ela eu não a conhecia pessoalmente, eu sabia do trabalho dela enquanto poetisa e ter encontrado ela e ter visto essa conexão que ela tem com a mãe dela e essa luta, essa busca dela de se reafirmar sua cultura e trazer as raízes à tona, isso é um trabalho que eu acredito que nós, enquanto sul-mato-grossenses, nós temos que prezar em qualquer coisa que a gente for fazer, porque nós somos o estado com a terceira maior população indígena do Brasil e isso é pouco reconhecido”, observou.
Mariana celebrou também a conquista de um espaço em cargo de liderança na equipe de Guadakan. “Nós temos mulheres na liderança, à frente de retomadas indígenas, que fazem um esforço muito grande para manter as famílias vivas. E isso é uma pedra fundamental, o papel da mulher dentro da sociedade e que não é reconhecido, a gente sabe que isso é histórico, a gente sabe que isso é sistêmico e aí nós mulheres entramos no Audiovisual para ocupar esse espaço também, e pra reafirmar as nossas vozes. Poder contribuir nesse filme, com esse trabalho, pra mim foi de grande valor nesse sentido. Eu sou cineasta, preta, estou roteirista, tenho agora um curta pra sair com um indígena Guarani Kaiowá, que a gente vai gravar em Rio Brilhante e a gente tem protagonistas mulheres também nesse filme. É muito legal poder estar nesses espaços, escutar o que essas mulheres têm e a forma que elas querem transmitir isso para a gente”.
RIO CÊNICO 'VIROU FILME'
Ansioso com sua estreia na direção cinematográfica, Silas Ismael comemorou a exibição de “Rotas Monçoeiras: A História de um Rio e seu Povo”, filme que dirigiu junto de Cid Nogueira e que conta com Gleycielli Nonato no elenco. "Pra mim é um momento novo, eu sou mais dos bastidores, de ficar do outro lado da câmera. Me deu um branco ali na hora [de falar ao público], mas a expectativa é de não parar", declarou.
De modo contemplativo, o filme de Silas retrata a rotina das populações ribeirinhas, artistas locais e pescadores ao redor do Rio Cênico, unidade de conservação que fica em parte do rio Coxim e seu entorno.
Para o diretor, Coxim possui belezas naturais e histórias que merecem ser exploradas pelo audiovisual. "Eu não sou nascido em Coxim, mas Coxim virou quase que um berço. Eu conheci muitas pessoas lá, mas até hoje eu conheço muito pouco de lá, então eu acho que ainda tem muita coisa pra mostrar daquela região, não só de Coxim, mas todos aqueles pantanais de belezas cênicas", disse, reafirmando seu interesse em produzir mais filmes na região. "Esse é um pontapé inicial e tem muito lugar pra filmar, pra explorar, pra mostrar pra população e aproveitar esses momentos, essas oportunidades para crescer", concluiu.