Na arborizada rua Goiás, bem no centro de Campo Grande, um imponente portão azul se destaca no muro alto da casa projetada pelo renomado arquiteto Jurandir Nogueira.
Antes de tocar a campainha, paramos para apreciar a pintura que anuncia a função daquele espaço: ‘Escola Aguapé’ - a única a carregar o título de iniciativa Waldorf em Mato Grosso do Sul.
Escola tem sede em casa projetada pelo famoso arquiteto Jurandir Nogueira | Foto: Aly Freitas
Waldorf é o nome de uma antiga fábrica alemã, onde após a Primeira Guerra Mundial, seu diretor, Emil Molt, se uniu ao médico e filósofo Rudolf Steiner, para criar uma escola que atendesse os filhos dos operários da fábrica. “Eles pensaram nessa pedagogia para essa escola, como sendo uma escola mais humanizadora, para não perpetuar aquele contexto de guerra, de agressões. E essa pedagogia começou toda fundamentada na antroposofia, que é uma filosofia que busca compreender o ser humano em todas as suas fases de desenvolvimento: espiritual, físico e social”, introduziu Mariana De Capitani, secretária da escola e da associação de mães que fundou a Aguapé.
À equipe do TeatrineTV, Mariana explicou que a Aguapé surgiu por inquietação de um grupo de mães após o fechamento de uma escola Waldorf na Capital sul-mato-grossense. “Aqui tinha uma escola Waldorf e foi lá que eu matriculei meu filho. Essa escola funcionou quatro ou cinco anos, aí no ano passado [2023] ela fechou. Quando essa escola fechou, as mães ficaram órfãs de escola, dessa pedagogia, e um pouco desesperadas para encontrar um lugar mais acolhedor aqui em Campo Grande, que é uma cidade muito tradicional, muito difícil de encontrar outros caminhos de ser e viver”, opinou.
Conforme Mariana, o fim da antiga escola fez com que as famílias se unissem para garantir que seus filhos seguissem recebendo a educação Waldorf. Para isso, foi necessária a criação de uma associação, que foi formalizada em junho de 2023. “A base da pedagogia Waldorf é que as escolas sejam associativas e não particulares. Então a gente começou entendendo como que funcionava essa coisa de associação, que era um pouco assustador para o grupo como um todo. Éramos em 11 famílias, até que sobraram 6 que continuaram nesse caminho e estavam bem certas de que era isso que queriam”, detalhou.
Após a formalização da escola, as famílias passaram a buscar um espaço adequado para dar início às atividades da Aguapé. “Tivemos muita dificuldade de encontrar um espaço em Campo Grande que tivesse uma boa área ao ar livre. É uma cidade que tem muitas casas, mas as casas são todas pavimentadas, então a gente nem tinha essa ambição de achar talvez um lugar com uma super área verde, como a gente encontrou aqui e que coubesse no nosso orçamento. Aí encontramos essa casa e ficamos apaixonadas, porque é uma casa com cara de escola, que tem um espaço verde maravilhoso, uma horta e um jardim enorme”, explicou Mariana.
Foi nesse amplo espaço verde que, durante a visita, deparamos com um pequeno grupo de crianças limpando algumas mesas de madeira após a preparação de pães que seriam entregues às famílias no fim do período.
“Elas [crianças] fazem o pão, que também é uma atividade de incentivo à alimentação mais saudável. O pão representa a essência da pedagogia, porque trabalha a força das mãozinhas. As crianças precisam ganhar força para conseguir segurar um lápis ou fazer uma escultura, por exemplo. Nesse processo elas também vão trabalhando os sentimentos, porque você pode colocar força, raiva na hora de amassar. Também conhecem a mistura das coisas. É uma coisa de paciência, transformação dos processos, vem a paciência de esperar o pão crescer para depois assar no forno e depois ser servido. A gente adquiriu o hábito de fazer pão às quartas-feiras”, contou Mariana.
ARTE E NATUREZA POR TODO CANTO
Após a limpeza, em meio a correria e gritos de felicidade pelo parquinho, a professora Viviane nos falou da importância da arte na formação das crianças Waldorf. “Aqui é separado em épocas e estações, tudo dentro da BNCC, só que diferente da escola tradicional. Trabalhamos bastante as artes, todas as artes. Usamos arte para tudo o que a gente precisa ensinar para os alunos. De manhã, quando eles chegam, tem uma roda, uma roda mesmo, ciranda. Essa roda alterna verso com música, de acordo com a época”, explicou.
Conforme a professora, a rotina que a Aguapé oferece às crianças permite que elas tenham a natureza como principal fonte de criatividade. “Segunda-feira nós fazemos horta, aí eu vou para a horta com eles, a gente rega, se tiver alguma coisa para colher, nós colhemos, se tiver alguma coisa para plantar, plantamos. Na terça é aquarela, uma aquarela natural, feita de coisas naturais. A gente chama de aquarela Waldorf, porque é a escola Waldorf que usa. No jardim [de infância] usamos só as cores primárias, por enquanto, aí depois as outras cores vão chegando", contextualizou.
Crianças pintando com tintura de cúrcuma e beterraba | Foto: Reprodução/ Instagram
"Na quarta-feira nós fazemos o pão super pedagógico também, para fortalecer essas mãozinhas e participar de processos, porque hoje a criança não sabe de onde vem as coisas. Aí na quinta-feira nós fazemos o desenho livre, que é a expressão do desenvolvimento do corpo físico da criança e do que ela está passando. De repente ela coloca algo ali no desenho e a gente fica esperto, fala, ‘opa, tá acontecendo alguma coisa com essa criança’, ou ‘nossa, essa criança tá super se desenvolvendo maravilhosamente’. E na sexta-feira, é dia do brilho. Você viu que eles, depois da atividade, ajudam a limpar? Na sexta é o dia específico do brilho. Aí nós lavamos as galochas que foram usadas na segunda, lavamos os paninhos. Cada um recebe um paninho, um spray e aí vão limpar”, detalhou a professora.
De repente, duas crianças franziram a testa e um burburinho tomou conta da turma. Atenta, a professora pausou a entrevista e calmamente passou a gerenciar o conflito que, aparentemente, envolvia paninhos coloridos e a bacia com o sabão que restou da limpeza. Após tranquilizar as crianças, Viviane aproveitou para nos contar sobre o acolhimento oferecido na Aguapé. “Todo dia tem um conto de fadas ou uma história curativa. A história curativa vem quando eu vejo que alguém está precisando, por que está brigando muito ou porque nasceu um nenenzinho, ou morreu alguém da família. Tudo o que a gente quer ensinar para eles é através de música, de uma história, ou de um símbolo”, detalhou.
"Às vezes a criança está brava, por exemplo, aí a gente fala: ‘nossa, hoje o cavalo bravo veio pra escola, você viu?’ ou ‘nossa, seu coração tá meio cinza hoje, não tá brilhando’, então é sempre um símbolo, uma música, um verso. Criamos uma historinha. Aí a criança já sabe que é ela e entra na brincadeira. Então você não precisa, por exemplo, chamar atenção, só num caso muito extremo. A gente se preocupa muito com os limites. E aí, o não, ele vem de outra forma. Até usamos o não, que nem você viu lá, o amigo estava agitando o sabão e eu disse: ‘ó, a amiga não tá gostando, então nós vamos parar’. Então, eu sempre me incluo, falamos de nós, para fazer uma ideia de grupo”, pontuou Viviane.
Viviane explicou também que o teatro e a dança são parte fundamental do processo de aprendizagem das crianças. “As artes cênicas surgem a todo momento, nós as encontramos na roda, por exemplo. Se eu estou na roda de outono eu falo que chegou o outono e veio uma chuva e os passarinhos dormiram, as crianças já sabem o que fazer. Eu vou narrando e eles vão inventando ali, com o corpo, conforme a cabeça deles, aí deita todo mundo no chão, faz barulho de chuva. Na época da Páscoa, a gente trabalha a metamorfose da lagarta para a borboleta, então começa a conversa de lagarta, aí eles se arrastam no chão, comem folha. Na idade deles é meio subjetivo, não é muito ensaiado", explicou.
Conforme a professora, é no processo de aprender sobre os próprios sentimentos que as crianças acabam descobrindo novas maneiras de se expressar por meio da arte. “As artes cênicas acabam recebendo esses arquétipos, nas histórias e na hora de brincar livre. É cada coisa que aparece [risos]. Às vezes brincam que um é mãe, outro é pai, outro é tio. Às vezes eles são animais, às vezes são plantas, aí é infinito mesmo. Com os recursos que tem, os paninhos, cangas, quadradinhos, pedaço de tricô que a gente faz e deixa lá pra eles, eles vão criando. Dizem: ‘aqui é cama, aqui é palácio, lago’, às vezes o chão é lava, é infinito mesmo. Essa criação do ‘às vezes’ a gente só conduz quando vê que eles não estão conseguindo, porque se o mundo agita a gente, imagina eles”, disse.
"Aí, conforme vai avançando os anos, no primeiro ano [do ensino fundamental] eles começam a fazer teatro mesmo. A professora começa a trazer essas falas pra eles decorarem, algo bem tranquilo e depois tem uma data em que eles vão se apresentar, que vai entrar também a música, a flauta doce. No oitavo ano tem um teatro super elaborado, com a peça sendo uma terapia através da história e a história que vai ser encenada é escolhida mesmo, de propósito. A professora sabe como é a turma, porque ela levou essa turma desde o primeiro ano, [na pedagogia Waldorf] não muda de professora. Ela pega no primeiro ano, e aí ela vai dar aula no primeiro, no segundo, no terceiro, até acabar, até chegar no ensino médio. Claro que entra professores de área, professor de matemática, professor de música, mas essa professora, ela vai ficar com eles, então ela vai escolher a dedo esse teatro, porque ela sabe do que eles precisam, e eles vão se identificando com os personagens”, explicou a professora.
PARTICIPAÇÃO FAMILIAR
Com o horário de saída se aproximando, paramos para conversar com Thais Pompêo, mãe da pequena Clara, de 5 anos. Elas nos contou que o diferencial da Aguapé está justamente na construção de uma educação em que as famílias se apoiam umas nas outras. “Tem aquele provérbio africano que é superfamoso, que diz que é preciso uma aldeia inteira para criar uma criança, né? Quando a Clara nasceu eu falava: ‘gente, de verdade, a gente precisa de uma aldeia inteira, porque a mamãe precisa trabalhar’, declarou.
Thais, que conheceu Waldorf através de uma amiga, disse que se identificou de imediato com a proposta pedagógica. "Eu lembro que, diferente das outras escolas, que você tem que largar a criança na adaptação, você fica numa sala e a criança chora, a professora me convidou para entrar. Ela falou: 'entra, pode ficar na sala um pouquinho com ela, quando começar a roda, ela vai naturalmente com os amigos, e aí você se despede dela'. Bem no começo, as crianças fizeram uma roda e começaram a fazer a oração do primeiro setênio, que fala: 'eu vejo o amor na mamãe, no papai, no rio'. Tudo tinha um movimento que representava aquilo. Aí eu comecei a chorar, eu falei, gente, mas isso é muito bonito, isso é muito importante. Porque extravasa a coisa da educação como a gente tem hoje em dia. A educação não pode ser um troço materialista do tipo que ensina isso para a criança fazer isso, ou só ensina porque ela vai passar no vestibular. A educação é uma coisa que está na prateleira das artes, porque educação é para a vida, para o mundo", opinou.
Para Thais, matricular sua filha na Aguapé foi uma maneira de garantir que ela cresça com a educação Waldorf. "Quando a antiga escola fechou, minha amiga falava assim: 'cara, não sei se as crianças são amigas ainda, mas os pais ficaram muito amigos'. Eu lembro de ver que as crianças estavam muito bem, que elas tinham natureza, tinham espaço para se expressar, tinham espaço para se movimentar, e que as famílias eram amigas, se apoiavam e faziam coisas muito interessantes juntas. Hoje, eu vejo que a Aguapé segue na mesma direção. Não sou uma das pessoas que fundaram a escola, mas sempre estou aqui e acredito no trabalho que está sendo feito. Eu sinto que a escola está indo num bom caminho, que a minha filha está conseguindo aprender tudo o que é necessário para que ela conviva no mundo, para que ela interaja com as outras crianças", disse.
Por fim, Thais sorriu ao ser questionada sobre o perfil das famílias que possam vir a matricular suas crianças na Aguapé. "Eu acho que no fundo, tem que ser uma família que tenha os mesmo valores, os mesmos interesses [que os nossos]. Que goste e que precise pelo menos de um jardim, de uma horta e que acredite nisso. Uma família que não acha que vai ter aranha na grama e que a filha dela vai ser picada, nem que vai preferir um tapete de grama ao invés da grama natural. As famílias precisam saber que numa escola como essa existe o brincar livre, mas que não é tão livre assim, que tem uma preparação dos ambientes. Aqui não entra brinquedo de plástico, muito menos o que acende luzinha e que pra nós não adianta a criança aprender a ler e a escrever com quatro anos sem antes saber respeitar o outro, aprender a dividir. Na verdade, não precisamos de famílias iniciadas na antroposofia, mas que queiram estar presentes na educação de suas crianças, que tenham afinidade, que tenha consciência de que algumas mudanças precisam ser feitas até mesmo nos adultos e que não adianta eu falar para minha filha ser gentil se eu sou muito estúpida. A gente quer que o filho da gente seja uma pessoa feliz e com isso trabalhamos também a auto-educação", concluiu.
SERVIÇO
A Escola Aguapé fica na Rua Goiás, nº1565, bairro Jardim dos Estados, em Campo Grande (MS).
São aceitas matrículas para o Jardim de Infância e Primeiro Ano do Ensino Fundamental no período matutino. A escola também oferece atividades diferenciadas no contraturno/vespertino.
Pedagogas ou pedagogos interessados em trabalhar na Aguapé durante o ano letivo de 2025, devem enviar currículo e carta de apresentação para o email [email protected] até o dia 30 de outubro.
Mais informações podem ser obtidas pelo telefone (67) 99205-3309 ou através do Instagram @escolaaguape